domingo, 19 de junho de 2005

Soneto de fidelidade

Soneto de fidelidade
Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure



Estoril - Portugal, 10.1939

Consertam-se Jegues

Consertam-se jegues



O cabra da peste vinha montado no jegue, quando, de repente, o animal empaca. E, como todo jegue que se preza, não sai mais do lugar de jeito nenhum. O sujeito faz de tudo e nada. Lá na curva ele vê uma faixa: "Consertam-se Jegues".


Entre aliviado e curioso ele caminha até lá e conta o problema. O dono da oficina manda seu ajudante em um caminhão para rebocar jegue. Chegando no local, o guindaste levanta o asno, coloca no caminhão e toca todo mundo para a oficina. Quando chegam, o dono da oficina fala para o ajudante:

- Severino, bota ele na rampa.

O guindaste desce o jegue numa rampa. Aí, o dono da oficina pega uma raquete de madeira (tipo frescobol), chega por trás e dá uma raquetada no saco do jegue. Santo remédio: o animal sai numa disparada! O dono do jegue fica abobado com a eficiência do serviço, mas tem uma dúvida e pergunta:

- Mas e agora, cumé que vou pegar o jegue?

Aí o dono da oficina fala para o ajudante:

- Ô Severino, bota o homi na rampa...

sábado, 4 de junho de 2005

Carta

Carlos Drummond de Andrade

Bem quisera escrevê-la
Com palavras sabidas,
As mesmas, triviais,
Embora estremecessem
A um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
Canais de argila e sombra,
Ela iria contando
Que vou bem, e amo sempre
E amo cada vez mais
A essa minha maneira
Torcida e reticente,
E espero uma resposta,
Mas que não tarde; e peço
Um objeto minúsculo
Só para das prazer
A quem pode ofertá-lo;
Diria ela do tempo
Que faz do nosso lado;
As chuvas já secaram,
As crianças estudam,
Uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-nos tornando o tempo
Estranhamento longo
Á medida que encurta.
O que ontem disparava,
Desbordado alazão,
Hoje se paralisa
Em esfinge de mármore,
E até o sono, o sono
Que era grato e era absurdo
É um dormir acordado
Numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
Que se vai, de mandar
Notícias amorosas
Quando não há amor
A dar ou receber;
Quando só há esperança,
Ainda menos, pó,
Menos ainda, nada,
Nada de nada em tudo,
Em mim mais do que em tudo,
E não vale acordar
Quem acaso repouse
Na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

domingo, 22 de maio de 2005

Livro das Perguntas

Pablo Neruda

Tem coisa mais boba na vida
que chamar-se Pablo Neruda?

Que vim fazer neste planeta?
A quem dirijo esta pergunta?

E que importância tenho eu
no tribunal do esquecimento?

Não era verdade que Deus
vivia no mundo da lua?

Minha poesia desgarrada
abr'olhos com estes olhos meus?

Por que me picam as pulgas e os
sargentos da literatura?

Que dirão da minha poesia
os que não tocaram meu sangue?

Posso perguntar ao meu livro
se eu mesmo o escrevi? Desde quando?

Por que nas épocas obscuras
se escreve com uma tinta extinta?

E por que detesto as cidades
com cheiro de mulher e urina?

Quem devorou rente aos meus olhos
um tubarão cheio de pústulas?

Por que andam as ondas me indagando
sobre as mesmíssimas perguntas?

Por que não nasci misterioso?
Por que cresci sem companhia?

Das tais virtudes que esqueci
dá pra fazer um terno novo?

Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?

Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?

Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?

Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos junto?

Ainda ontem disse aos meus olhos:
quando de novo nos veremos?

Não é melhor nunca que tarde
dentro de listões amarelos?

Em que janela me quedei
em busca do tempo, se pulcro?

Ou o que diviso destes ermos
ainda não passa de futuro?

Que me esperava em Ilha Negra:
verdades verdes? compostura?

Se morri e não me dei conta
morto, a'hora, a quem me pergunto?

Quem me mandou desvencilhar-me
das portas do meu amor-próprio?

É verdade que um condor negro
sobrevoa minha pátria noite?

Que há de pesar mais na cintura:
padecimentos? memórias?

Que deu em mim de transmigrar
se vivem no Chile meus ossos?

Por que me movo sem querer?
Por que estou sempre desinquieto?

E se minh'alma desabou
por que meu esqueleto prossegue?

Por que vou girando sem rodas
e voando sem asas nem penas?

Por que minha roupa desbotada
se agita como uma bandeira?

E que bandeira tremulou
no espaço em que não me esqueceram?

Pois não foi onde me perderam
que eu me dei, enfim, por achado?

Esse onde onde termina o espaço
se chama de morte ou infinito?

Por que voltei à indiferença
do maroceano desmedido?

Achas que o luto te antecipa
à bandeira do teu destino?

Se caí no laço do mar
por que fechei os meus caminhos?

Que significa persistir
no beco da morte-sem-saída?

E no mar do não-passa-nada
mortalha faz algum sentido?

Por que trabalham sal e açúcar
construindo-se uma torre branca?

Onde fica o umbigo do mar?
Por que até ali não chegam as ondas?

Foi das costas do mar que eu vim:
para onde vou quando me atalha?

Não sentes também o perigo
na gargalhada do maralto?

Onde terminará o arco-íris:
dentro da alma ou no horizonte?

Vejo de novo o mar ab ovo:
o mar me viu ou botou banca?

Não choras rodeado de risos
- só - com as garrafas do vazio?

Quanto media o polvo negro
que obscureceu a paz do dia?

Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?

Ou não será uma claridade
entre dois triângulos escuros?

E não achas que a morte vinga
dentro do sol de uma cereja?

Ou que em perigosas substâncias
do não ser, a morte lateja?

Devo escolher esta manhã
entre o céu e o mar, tudo ou nada?

Quem sabe lá de onde é que vem
a morte: de cima ou de baixo?

A morte não seria enfim
uma cozinha interminável?

Ou não seria a vida um peixe
preparado para ser pássaro?

O retrato preto denunciador

EAP & MLO

Dedicado à memória de Edgar Allan Poe*

Não espero nem peço que se dê crédito à história meramente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas, considerando o modo como dirijo, amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários cínicos, uma série de simples acontecimentos domésticos, que devido a suas conseqüências, me aterrorizaram, torturaram e instruíram.

Tudo começou quando, após sair totalmente desorientado de mais uma aula de Renascimento Português, fui abordado pela senhorita Rebeca. Ela retirou um canudo de sua bolsa, me entregou e disse que era um presente. Tratava-se de uma foto de um dos meus ídolos, o escritor estadunidense Edgar Allan Poe. No entanto, não tentarei esclarecê-los, mas no momento em que olhei para o retrato, em mim, quase não se produziu outra coisa senão horror. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza esse sentimento a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Mas o fato é que desde que recebi aquela foto, a ternura de meu coração que era tão evidente, e que me tornava alvo dos gracejos de meus camaradas, começou a desvanecer. Enrubesço ao confessá-lo, mas não só o meu caráter como o meu temperamento, sofreram, devido à presença daquela foto, uma modificação radical para pior.

Tornava-me, a cada hora, mais taciturno, mais irritadiço, mais cínico e mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me aos meus amigos e familiares. No fim, cheguei mesmo a tratá-los com indiferença. Meus amigos, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto à foto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de destruí-la, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os colegas de trabalho, o cobrador do ônibus e mesmo o porteiro do prédio, quando, por acaso cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao consumo prolongado e contínuo de Fanta Laranja? – e, no fim, até a foto, que começava agora a amarelar na parede, e que por conseguinte, se tomara algo difícil de se encarar, começou a refletir os efeitos de meu mau humor.

Numa noite, ao voltar para casa, muito embriagado após mergulhar minhas magoas em três doses de Fanta Laranja, numa de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que a foto evitava a minha presença. Apanhei-a, e ao encará-la, notei que ela parecia assustada ante a minha violência. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pelo suco industrializado de laranja produzido pela Coca-cola, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Apanhei na escrivaninha uma tesoura, arranquei a foto da moldura e, friamente, recortei um dos olhos de Edgar Allan Poe! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no consumo de Fanta Laranja a lembrança do que acontecera.

Entrementes, recoloquei a foto na parede, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas, ao menos, a mim, não parecia mais que Poe sofria qualquer dor. Eu andava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à aproximação do local em que se encontrava o retrato. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos secundários - pois o cinismo e o sarcasmo ainda são os primários –, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final.

O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira à imagem do pobre poeta. Pela manhã, a sangue frio, retirei o retrato da parede, e por mais infantil que possa parecer, pintei-lhe os lábios e desenhei-lhe "chifrinhos". Observei por alguns minutos e, logo, após saquei de meu bolso um isqueiro e ateei fogo à imagem de Poe. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Queimei-o porque sabia que o respeitara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Queimei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mãe, minha sobrinha e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela. As palavras "Putz grila!", "Caráca! Véi!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura do autor de "O Corvo" como que num outdoor gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma fogueira embaixo da imagem de Poe.

Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O retrato de Poe, lembrei-me, fora queimado numa churrasqueira que fica no quintal nos fundos da casa. A queda das outras paredes e a cal do muro, juntamente com as chamas e o amoníaco desprendido das cinzas da foto, produziram a imagem tal qual eu agora a via. Ou talvez alguém tenha retirado as cinzas do retrato da churrasqueira e lançando-as, através de uma janela aberta, o que fez com que a imagem do retrato fosse transferida para a parede do meu quarto...

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante dias, não pude livrar-me do fantasma de Poe e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do retrato e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava - Feira da Ceilândia, Cebinho, Café da Rua 08 ou na Banca Brasiliana da RodoStation do Plano Piloto - outra foto do poeta que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes engradados de Fanta, Coca-cola, Guaraná Antártica ou sei lá o quê – não concebo bem que refrigerante pudesse ser – que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto dos engradados, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo.

Levantei-me e o encarei como horror. Era um retrato emoldurado de Poe – tão grande quanto o que eu havia queimado – e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele: pelo semblante do autor, tive a nítida impressão que este parecia me encarar e me julgar com os olhos! Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Seus olhos pareciam com os de um abutre... olhos pálidos, como os de quem sofre de catarata. Meu sangue se enregelava ao sentir que seu olhar caía sobre mim; e assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar o quadro daquele lugar, destruí-lo e assim libertar-me daqueles olhos para sempre.

Ora, aí é que estava o problema. A esta altura, deveis imaginar que sou louco. Mas os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveríeis ter visto como procedi cautelosamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação lancei mão à obra!

Fui mais cauteloso do que de hábito. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, pouco a pouco, na iminência de me livrar daquele olhar... Ri com gosto, entre dentes... O quadro estava num local escuro como piche, espesso de sombra. E eu continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais. Fiquei completamente silencioso e nada disse.

Ao aproximar-me, um feixe de luz iluminou uma parte do quadro e, novamente, pude ver os olhos do poeta. Eles estavam abertos, plenamente abertos. E, ao contemplá-los, minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza; Poe me fitava com olhar de reprovação! Seus olhos tinham um aspecto desbotado, com uma horrível película a cobri-los, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, pois a fresta dirigira a luz como por instinto, sobre o maldito lugar.

De súbito, chegou a meus ouvidos um som baixo, duas palavras que não conseguia entender, algo como o tique-taque de um relógio, quando abafado com algodão, ou o sistema de som do Cine Márcia, quando exibindo um filme de ação.. Eu não sabia bem que som era e, acreditara tratar-se do bater do meu coração. Ele me aumentava a fúria, como o bater um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter-me tão focalizado em meu objetivo quanto a réstia de luz sobre os olhos do poeta. Entretanto, o infernal som aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido! Cada vez mais alto, repito, a cada momento! Prestai-me bem atenção? Disse-vos que houvera me tornado mais irritadiço do que eu um dia fora. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o barulho era cada vez mais alto.

E, depois, nova angústia me aferrou: o ruído poderia ser ouvido pelo dono do bar! A hora de me livrar daquele retrato maldito tinha chegado! Com reflexos semelhantes aos de um ninja, rapidamente retirei a foto da moldura e a embolei, colocando-a em meu bolso. Então, voltei rapidamente para minha casa – que agora estava em adiantada fase de reconstrução. Arranquei três cerâmicas do soalho do quarto e coloquei a foto entre os vãos. Novamente, ateei-lhe fogo e depois recoloquei as cerâmicas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o dele, poderia distinguir qualquer coisa suspeita.

Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma demão de cera tinha recolhido tudo... Ah! Ah! Ah! Terminadas todas essas tarefas, eram quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Como tenho insônia, para mim era normal dormir tão tarde. Quando o sino do relógio soou a hora, bateram a porta da rua. Desci para abri-la, de coração ligeiro,... pois que tinha eu agora a temer?

Entraram três homens que se apresentaram, com perfeita mansidão, como estudantes de literatura. Fora ouvido de um vizinho, que eu tinha em meu poder um retrato de Edgar Allan Poe. Despertara-se a suspeita de eu houvera cometido um crime contra a sua memória. Tinha-se formulado uma denúncia e eles, estudantes de Letras, tinham sido mandados para investigar.

Sorri... pois, que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O retrato, disse eu, não existia, só em sonhos. Poe, relatei, nunca gostara de tirar fotos, portanto, como poderia eu ter alguma foto sua? Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi que dessem busca... completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia do meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira, precisamente sobre o lugar onde repousavam as cinzas da vítima.

Os alunos ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversavam coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça me doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto: eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação: ela, porém, continuava a aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.

É claro que então minha palidez aumentou excessivamente. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava... E que podia fazer? Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao do sistema de som do Cine Márcia, quando exibindo um filme de ação. Eu respirava com dificuldade... E no entanto, os estudantes não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado, e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava.

Por que não se iam embora? Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela permanência dos estudantes... mas o som aumentava constante. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei... enraiveci-me... praguejei! Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as cerâmicas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se então mais alto... mais alto... mais alto!

E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... não, não! Eles suspeitavam!.. Eles sabiam!... Estavam zombando do meu horror!... Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que essa agonia! Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer!... E agora... de novo! Escutai!

Mais alto!
Mais alto!
Mais alto!
Mais alto!
Mais alto...

Tudo bem! - trovejei – Vocês não precisam mais fingir que não escutam! Confesso o crime!... Arranquem as cerâmicas!.. aqui, aqui! ... ouçam o desgraçado dizer: “Nunca mais, nunca mais...”

FIM

Marcos Lima


*Que, depois dessa, deve estar se contorcendo no túmulo...

sábado, 14 de maio de 2005

Salim e sua empregada

Salim era milionário e não tinha se casado para não gastar dinheiro. Seu único luxo era sua empregada, Jacira, uma morena lindíssima. Todo dia, durante anos, quando Salim chegava em casa, Jacira servia o jantar e ia tomar banho.

Até que um dia, Salim estava jantando e ficou ouvindo o barulho da água, pensando na Jacira tomando banho.

Mastigava a comida e pensava na Jacira tomando banho...
Mastigava a comida e pensava na Jacira tomando banho...
Mastigava a comida e pensava na Jacira tomando banho...

Até que se levantou da mesa e foi até o banheiro. Bateu na porta:

- Jacira, você está tomando banho?
- Estou, Seu Salim.
- Jacira, abre a porta pra Salim.
- Mas, Seu Salim... estou nua...
- Jacira, abre a porta pra Salim.

A Jacira não resistiu muito e acabou por abrir a porta. Nesse momento, Salim entra no banheiro, vê Jacira nua e pergunta:

- Jacira, quer foder com Salim?
- Mas seu Salim, eu não sei...
- Jacira, quer foder com Salim?
- Sim, quero sim, seu Salim.

Então Salim pulou em cima dela.... botou a mão no registro do chuveiro e...

- Jacira não vai foder Salim não !!! -
fechando o registro
- Chega de gastar o água... vai foder outro!!!

domingo, 1 de maio de 2005

A incapacidade de ser verdadeiro

Carlos Drummond de Andrade

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.

Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:

- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.

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Texto extraído de: ANDRADE, Carlos Drummond de. A cor de cada um. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1998.

sexta-feira, 22 de abril de 2005

Bêbado e esquecido

José havia passado o dia inteiro bebendo. À noite, ainda no bar, o garçom lhe disse:
- Aí José, já vamos fechar. VÁ EMBORA!!!!!
- Estou indo... - disse José.
José se levanta e cai no chão, então ele pensa: "Vou me arrastando pra fora". Ao chegar na porta, tenta se levantar e cai novamente. Então ele pensa: "Vou me arrastando pra casa". Ao chegar em casa, perto de sua cama, tenta se levantar e cai mais uma vez, mas já em sua cama. No outro dia sua mulher briga com ele:
- José, seu pé-inchado!!! Voltou bêbado novamente!!!!
- Como você sabe mulher??? Você já estava dormindo quando cheguei em casa!!!! - disse José.
- É que o dono do bar ligou hoje cedo para avisar que você esqueceu sua cadeira-de-rodas lá outra vez!

Sou do tamanho do que vejo!

«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali' estão.

E já agora, consciente de saber ver, olhou vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro - do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. «Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a-alma inteira, encosto' a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.

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Trecho extraído de: PESSOA, Fernando. Livro do desassossego, composto por Bernardo Soares, São Paulo, Cia das Letras, 2003.

sábado, 16 de abril de 2005

Maneira de amar

Carlos Drummond de Andrade

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza. Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho. Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. “Você o tratava mal, agora está arrependido.” “Não”, respondeu, “estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava.”

Texto extraído de: ANDRADE, Carlos Drummond de. A cor de cada um. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1998

sexta-feira, 1 de abril de 2005

O problema da adequação lingüística

Depois dos problemas ocorridos na Ásia, o Governo Brasileiro resolveu instalar um sismógrafo (medidor de abalos), para cobrir todo o país. O Centro Sísmico Nacional enviou às autoridades da cidade de Icó, no Ceará, uma mensagem que dizia:

"Possível movimento sísmico na zona. Muito perigoso, superior Richter 5. Epicentro a 3 km da cidade. Tomem medidas. Informem resultados com urgência".

Após uma semana, foi recebido no Centro Sísmico Nacional um telegrama que dizia:

"Aqui é da Polícia de Icó. Movimento sísmico totalmente desarticulado. O tal Ritchter tentou se evadir, mas foi abatido a tiros. Desativamos a zona. As putas tão todas presas. Não encontramos nenhum Epicentro; mas Epifânio, Epitácio, Epaminondas e outros três cabras suspeitos já tão detidos, aguardando as ordens. Achamos também um tal de Epílogo, mas foi no finzinho de um livro, prendemos o dono do livro. Não respondemos antes porque houve um terremoto da peste aqui, num ficô nada em pé".
Assinado: Delegado de polícia.

Annabel Lee

Annabel Lee
Edgar Allan Poe

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

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Tradução: Fernando Pessoa

domingo, 6 de fevereiro de 2005

A arte de mentir

A Arte de Mentir

Mentir é uma atividade inerente ao ser humano. Aquele sorriso amarelo que esboçamos diante de conhecidos ou o artificial "Tudo bem..." que respondemos automaticamente quando nos perguntam como estamos, tudo isso é a constatação prática de que a mentira está tão intrinsecamente enraizada em nossa personalidade que a gente mente que nem sente...

O problema é que alguns seres saem do convencional e desenvolvem melhor essa habilidade - tornam-se peritos na Arte de Mentir. Veja bem, pra quê estudar, por cinco anos, apenas para obter o nível superior de escolaridade, se pode-se conseguir o mesmo diploma no mercado-negro? Por que suar a camisa durante anos de sacrifício para construir uma reputação, se é possível criá-la ou destruí-la da noite para o dia, bastando pra isso ser convincente em sua mentira.

Pra piorar ainda mais, há muitos invejosos no mundo. E eles vivem unicamente para destruir a imagem dos outros, ou para desmentir a imagem criada pelos outros. De forma que, quanto mais tempo se leva para criar uma reputação, mais chances e oportunidades surgem para que alguém crie um boato que jogue todo o seu trabalho latrina abaixo! Ah, a verdade é tão frágil!

Sacou o poder da mentira? O lance é mais ou menos assim: se reputação e respeito são conquistados com o passar dos anos, às custas de muito sacrifício, onde cada tijolo da fundação custa uma gota de sangue, então, tudo o que você precisa é sair por aí com uma caminhonete roubando o tijolo dos outros. Em pouco tempo você será O Cara, El Capitán, e estará construindo seu palácio de inverdades verídicas.

Moral da história: esqueça princípios, valores e orgulho, porque todos eles são álibis para que você não queira ser você. Não há mais espaço para esses ideais no século 21 - reivindique suas conquistas! Só não esqueça que quanto mais você mentir, mais coisas terá para lembrar...

Até mais,

Marcos Lima

sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

Aviso relevante

Se você está lendo este aviso, então isto é para você. Cada palavra dessa mensagem inútil que você está lendo corresponde a um segundo de sua vida que foi desperdiçado.

Você não tem nada melhor para fazer? Sua vida é tão vazia que você não consegue pensar em melhores formas para passar estes momentos? Ou você é tão impressionável com autoridade que precisa respeitar e credenciar todos que alegam tê-la? Você lê tudo o que esperam que leia? Você pensa tudo o que devia pensar? Compra tudo o que dizem que você precisa?

Saia da sua casa ou do seu apartamento. Não se transforme num escravo da TV ou da Internet. Encontre um membro do sexo oposto. Pare de comprar o que não precisa. Não aceite soluções prontas. Abandone seu emprego. Comece uma briga. Prove que você está vivo.

Se você não reivindicar sua humanidade, em breve, não passará de uma mera estatística. Faça o que lhe der na telha. Só não vale reclamar, pois, afinal, você foi avisado...

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

Estudos Microbiológicos: Universo Punk

Você está cansado que lhe enfiem goela abaixo (e sem direito a copo d’água para acompanhar) os supersucessos superproduzidos pelas rádios FM e toda a purpurina pseudolegal que aparece na MTV? Está a fim de expressar ao mundo a insatisfação de sua alma, torturada e presa num mundo que não criou? (O que nos leva a pergunta: quem está preso num mundo que criou?). Quer se envolver com questões sérias, mas não tem paciência (nem coragem) para levantar bandeira alguma? A resposta para você está no movimento Punk...

Politicamente falando, o punk é o roqueiro PCO. Mais revolucionário que o PT e o PSTU, muito mais bizarro que o PRONA, e assim como todos esses, incapaz de promover qualquer tipo de mudança. Até porque o punk é o partido anárquico, e a anarquia pressupõe a ausência total de organização, uma vez que para ela (e para todo punk) o caos é a ordem natural do universo. Ao mesmo tempo em que é contra tudo, o punk não é a favor de coisa alguma.

Punk é o metaleiro que chegou ao extremo do radicalismo. A principal diferença entre um punk e um metaleiro, é que o punk não despreza, ele odeia. Odeia o sistema econômico, a sociedade, os pagodeiros e, principalmente, o fato de ter nascido num mundo que não criou. (O que nos remete à pergunta: quem nasceu num mundo que criou?). O punk não está nem aí para si mesmo, muito menos para “o outro”. A característica psicológica que melhor define o punk é a autodesvalorização do ego (assim como, do tu, do ele, do nós, do vós e do eles). O punk é por natureza um revoltado.

É muito fácil identificar um punk: é aquele sujeito que só ouve o que você não gosta, ou pelo menos, que faz questão de dizer que não gosta do que você gosta. O movimento punk é como uma sociedade secreta, que despreza (ou melhor, odeia) os ouvidos do populacho por serem tão medíocres e tão facilmente manipuláveis pela mídia. Essas almas pobres de espírito que não conseguem captar a beleza da fúria destruidora das músicas desconhecidas que os punks tanto idolatram...

O vestuário de um punk é composto, basicamente, de camiseta preta (ou branca desde que esteja com o nome de sua banda preferida escrito com sangue), tênis (de preferência Allstar, bem velho, rasgado e desgastado pelo uso contínuo e diário, e que nunca tenha sido lavado, pois só assim poderá expressar toda revolta contra a repressão onipresente da sociedade que impõe o padrão homogeneizante da limpeza) e calca jeans com, pelo menos, cinco anos de uso contínuo e diário (e que também nunca tenha sido lavada, justamente, para poder expressar toda a revolta contra a repressão onipresente da mesma sociedade que impõe o padrão homogeneizante da limpeza). O verdadeiro punk jamais lava o cabelo (isso quando o punk tem cabelo) ou toma banho, pois além de ser uma convenção social hipócrita que despreza, quando a água entra em contato com seu corpo, provoca uma reação alérgica que faz com que o punk fique limpo, e, por conseqüência, deixe de ser punk.

Para começar uma discussão animada com um punk, diga a palavra mágica: RAMONES. Funciona como abracadabra! Eles existem desde 1976, e mesmo que, tenham sido vítimas da perseguição da CIA e do FBI (que já silenciaram três dos quatro integrantes: Joey Ramone – assassinado por câncer; Dee Dee Ramone – envenenado por overdose e Johnny Ramone – assassinado por câncer na próstata), continuam, juntamente com os Sex Pistols (cujo lendário baixista, Sid Vicious, também foi assassinado devido a uma ação do M16), sendo os maiores representantes da estética musical punk. Todo punk os ama, embora nem sempre tenha coragem para admitir. Outros nomes incluem The Clash, Aborto Elétrico (que deu origem ao Legião Urbana), Inocentes, Garotos Podres e Devotos do Ódio. Jamais, mencione o nome do maior traidor do movimento: Ratos de Porão. Os punks jamais conseguiram perdoar o fato do vocalista João Gordo ter se vendido ao Trash Metal. Como regra, dinheiro é a antítese do punk, mesmo que seja a única forma de sustentá-lo.

Isso conclui a apresentação do fenômeno anti-social conhecido como punk. Da próxima vez que você encontrar um punk na rua, antes de encará-lo com desprezo ou virar o rosto para o outro lado (e talvez, esse seja um ato reflexo, provavelmente ocasionado pelo cheiro característico que insiste em acompanhar os punks), lembre-se: o punk é o paradigma de uma alma perdida e torturada, tão atormentada como uma vaca alérgica a lactose e, ainda por cima, confinada a viver num mundo que não criou (o que misteriosamente nos transporta para a pergunta: quem está confinado a viver num mundo que criou?).

Até a próxima!

Marcos

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Como encontrar um filme ruim

Encontrar um filme ruim não é uma tarefa tão fácil como se imagina. Escolher o filme certo para torturar seus amigos é uma arte que demanda a aplicação de diversas técnicas subliminares, além de um conhecimento cinematográfico apurado e em sintonia com as propostas da estética do Tosco.

Veja bem, aproveitar o final de semana prolongado para passar na Video-locadora e pegar um filme para assistir tornou-se uma atividade enfadonha - há muitos filmes para escolher, e isso pode desmotivar qualquer um. Por isso, segue, logo abaixo, um guia de referência rápida para ajudá-lo(a) a separar o joio do trigo. Seguindo estes passos você será capaz encontrar aquele filme que provocará um ataque cardíaco em quem ousar assistir. Ou seja, apenas os the very bost da cinematografia mundial.


O Título
Tem apenas uma palavra 1/2 ponto(s)
Eu acho que inventaram essa palavra... 2 ponto(s)
Tem seis ou mais palavras 5 ponto(s)
Caramba! De oito à doze palavras! 10 ponto(s)
Calma aí, to contando... putz, mais de doze palavras Você tem certeza que é o título?

Ainda sobre o Título
Contém a palavra Morto ou Monstro 1 ponto(s)
Contém a palavra Ser, Criatura, Morte ou Invasão 2 ponto(s)
Contém a palavra Kung fu, Massacre, ou Demônio 3 ponto(s)
Contém a palavra Espaço-sideral, Alien(ígena), Sangue, ou Zumbi 5 ponto(s)



A Capa ou o Poster:

Tem um jeitão imbecil 1 ponto(s)
É um desenho ou uma pintura 1 ponto(s)
...um holograma! 2 ponto(s)
Parece que foi desenhada com um marcador pelo seu sobrinho... 3 ponto(s)


A Parte de Trás (o verso do estojo da fita VHS ou do DVD):

Tem algumas fotos, nada muito alarmante 0 ponto(s)
Tem algumas fotos, algumas possuem algum (d)efeito especial ou apenas uma garota gritando para a camera 1 ponto(s)
Não há nenhuma cena do filme! 2 ponto(s)
Tem um desenho que parece ter sido feito com um marcador pelo seu sobrinho... 3 ponto(s)


A Sinopse

Inclui mais adjetivos do que substantivos ou verbos
1 ponto(s)
Inclui mais adjetivos do que substantivos ou verbos e você percebe o seguinte: "de gelar a espinha", "assustador", "criatura_comedora_de_carne_humana", "imparável"!, etc. 2 ponto(s)
"Baseado na obra de..." 3 ponto(s)
Faz uma comparação com outro filme 4 ponto(s)
Não há sinopse. Mas, tem um desenho que parece ter sido feito com um marcador pelo seu sobrinho... 5 ponto(s)

Exemplo:
"Quatro vezes mais rápido do que o som, o pássaro, maior do que um caça supersônico, é protegido por um radar invisível que também é um campo de força capaz de repelir qualquer tipo de projéteis destrutivos". (O Monstro da Garra Gigante)


O Enredo contém

Robôs, androides, ou computadores 1 ponto(s)
Um monstro de qualquer tipo 2 ponto(s)
Mortos-vivos 3 ponto(s)
Um ser criado por radiação, lixo tóxico ou algum experimento científico 4 ponto(s)
Cara, eu não encontrei enredo nenhum, só correria, bába e monstros tentando me assustar. Mas, na capa tinha um desenho que parece ter sido feito com um marcador pelo seu sobrinho... 5 ponto(s)

Exemplo:

"O Ser, uma aberração genética que se torna psicótica após ser bombardeada por lixo radioativo, passa a mutilar e decapitar todos que cruzam seu caminho". Sinopse, real, do filme O Ser (The being, 1983 - Bad Dream Inc).


Os Atores Principais

São famosos agora, mas estavam no começo da carreira quando fizeram esse filme 1 ponto
Eram profissionais de Luta livre ou atletas profissionais 3 ponto(s)
Não cometeram nenhum filme depois deste 4 ponto(s)
Esse é o único filme em que eles aparecem 5 ponto(s)
A Xuxa aparece nele Coloque o filme no chão. Enxarque-o com álcool e pegue um isqueiro. Toque fogo. Saia correndo como se sua vida dependesse disso, e, em hipótese alguma, olhe para trás.


O Diretor ou O Produtor

Fez um filme 0 ponto(s)
Peter Jackson ou Sam Raimi 1 ponto(s)
Roger Corman 10 ponto(s)
Ed Wood 60 ponto(s)


Confira aqui a pontuação:

Até 07 pontos
Putz, torrei duas horas de minha vida!!!

De 08 a 25 pontos
Caramba, esse filme é ruim até mesmo para mim

De 25 a 39 pontos
O desejo de todo filme ruim é ser assim quando crescer...

Acima de 40 pontos
Esse é o FILME. Le Merd. Material capaz de provocar infarto do miocárdio e morte cerebral em quem estiver num raio de dez metros de proximidade da tela da TV (e, se você prestar atenção, na capa tem um desenho que parece ter sido feito com um marcador pelo seu sobrinho...)

Boa sorte,

Marcos Lima

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Plano 9 do espaço sideral

Olá,

O filme Blade Runner - O Caçador de Andróides, do diretor britânico Ridley Scott, foi eleito o melhor filme de ficção científica de todos os tempos por 60 dos mais importantes cientistas do mundo, consultados pelo jornal britânico The Guardian. O filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, ficou em segundo lugar, seguido de Guerra nas Estrelas e O Império Contra-Ataca, os dois primeiros episódios da primeira trilogia de Star Wars, dirigidos por George Lucas. Alien, O Exterminador e Matrix também estão entre os dez melhores filmes escolhidos pelos especialistas.

Eu concordo que todos esses são excelentes filmes, porém, acredito que o segundo lugar merecia ter ficado com O PLANO 9 DO ESPAÇO SIDERAL. Embora muitos digam que se trata do pior filme já realizado por um ser humano (como se outros seres também fizessem filme...), não há como negar que o Plano 9 é uma obra-prima, e que há bastante coerência nos fatos narrados durante o filme. Sei lá, vai que numa noite qualquer você está andando na rua e pá! bem na sua frente aparecem os Saqueadores-de-tumba-do-espaço-sideral! Quem assistiu ao filme sabe o que fazer numa situação dessas...

De qualquer forma, decidi colocar, logo abaixo, alguns dados interessantes a respeito deste que é, pelo menos para mim, um marco da ficção científica, e que foi injustamente esquecido na votação feita pelos cientistas.

Até a próxima,

Marcos

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Plano 9 do Espaço Sideral



- Plano 9 do Espaço Sideral é conhecido mundialmente como o pior filme já feito na história do cinema.

- O título original do filme era Grave Robbers from Outer Space (ou, “Ladrões de Túmulos do Espaço Sideral”). No entanto, os pastores batistas que financiaram o filme reclamaram do nome. Ed Wood, então, alterou-o para Plan 9 from Outer Space (sem sequer explicar quais eram os oito planos anteriores).

- Aliás, o título orignal foi filmado e apareceu em uma das primeiras versões do filme. Depois que ficou decidido que ele seria alterado, o novo título foi filmado e aplicado sobre uma tomada de efeitos especiais, mostrando uma estação espacial alienígena. A tomada com o título original foi simplesmente cortada, para que o novo título fosse inserido no negativo. Somente a introdução em que Criswell apresenta o filme como Grave Robbers From Outer Space não foi alterada.

- Quando Gregory Walcott leu o roteiro, disse ao diretor Edward D. Wood Jr. que aquele era o pior script que ele já havia lido. Mesmo relutante, o ator assinou com a produção. Ele interpreta o protagonista Jeff Trent.

- Como os salários do elenco do filme foram pagos por uma igreja Batista, todos os atores tiveram que passar por um ritual de batismo.

- Os discos voadores sobrevoam os prédios das redes de televisão ABC, CBS e NBC, em Los Angeles.

- A produção era tão precária que os carros e uniformes de polícia foram emprestados pelo filho de Tor Johnson, Karl, que trabalhava no departamento de polícia de San Fernando.

- Bela Lugosi morreu quatro dias depois que as filmagens começaram. Wood parou a produção para reescrever o roteiro e acrescentar todas as imagens que ele havia filmado com o ator, incluindo cenas em um cemitério e do lado de fora da casa de Tor Johnson.



- No restante das filmagens, o papel de Lugosi foi interpretado por Tom Mason, quiroprata da esposa de Wood, que era tão alto quanto o ator. Ele interpretou o personagem usando uma capa que cobria sua face. Mason não foi creditado, obviamente.

- Em uma das versões do filme lançadas em vídeo, uma nota na capa diz: “Quase estrelando Bela Lugosi”, em razão da morte do ator.

- Nos créditos do filme, o personagem de Bela Lugosi é creditado como “The Ghoul Man”. Já no roteiro de Wood, ele era referenciado como “The Dracula Character”.

- A cicatriz usada por Tor Johnson tinha que ser tirada todos os dias, pois causava sérias irritações na pele do ator.

- Bela Lugosi usou seu próprio figurino nas cenas de que participou. Ele vestiu uma das capas que usava quando interpretava Drácula no teatro.

- Uma das mais conhecidas lendas a respeito da produção de Plano 9 do Espaço Sideral é que Wood usou vários objetos (como calotas de automóveis, formas de pizza, latas de torta e pratos de papel) para representar os discos voadores. Na verdade, o diretor utilizou discos voadores de brinquedo nas cenas em que as espaçonaves aparecem.- As filmagens foram realizadas no final de 1956, mas somente três anos depois um distribuidor foi encontrado para exibir a produção nos cinemas. O lançamento foi realizado pela Distributors Corporation of America, em 1959. Atualmente, os direitos de distribuição pertencem a Image Entertainment, que relançou o filme em DVD em fevereiro de 2000, numa edição especial contendo documentário e entrevistas com atores que trabalharam no filme (incluindo Gregory Walcott e Vampira).


quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Clatu, verata, nictu

Olá,

Você deve estar se perguntando por que escolhi este título para meu blog. Tudo bem, lá vai, prepare-se para a revelação: não fui eu que escolhi o título, foi o título que me escolheu! Pode chorar agora...

Essa frase saiu do filme Noite Alucinante 3 - O Exército das Trevas (Army of Darkness), em que para destruir o livro dos mortos, o herói precisa memorizar e dizer as palavras "Clatu, verata nictu" (ou "Klaatu barada niktu", ou ainda algo parecido). Isso foi um tributo que o diretor Sam Raimi prestou ao filme "O dia em que a Terra parou" (The day earth stood still, 1951). Nesse filme um alienígena instrui a uma garota para que memorize e diga a frase "Klaatu barada niktu" para fazer com que o robô pare de atacar.

Aí, você me pergunta novamente, "o quê tem a ver isso com o título desse blog?", e eu lhe repondo: nada! Só usei porque achei interessante. ponto. E daí, vai encarar? Cai dentro!!! Brincadeirinha, o objetivo deste blog é tratar de poesia, cinema, filosofia e rock 'n' roll, audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve.

Sinta-se a vontade para enviar suas críticas, dúvidas ou sugestões (não necessariamente nessa ordem...).

Saudações,

Marcos

À espera dos bárbaros

Constantino Kaváfis (1863-1933)  O que esperamos na ágora reunidos?  É que os bárbaros chegam hoje.  Por que tanta apatia no senado?  Os s...