sábado, 31 de dezembro de 2005

Feliz Ano Novo

Arnaldo Jabor

O ano de ver
através do vidro o eclipse do sol contra a neblina
pela janela da infância,
o ano de ver as primeiras imagens de
minha mãe,
que era uma Greta Garbo linda
com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica"
e lábios vermelhos, o ano
da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros
para curar a tosse entre nuvens,

o ano de temer o quarto onde
meus pais conceberiam
minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos
e gente como se eu morasse
fora do mundo (mistério que até hoje dura),
o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância, o ano
das pernas das mulheres, colunas altas e distantes
(até hoje),
o ano dos fantasmas do fundo do corredor,
o ano do cachorro
atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão,
o ano de ficar olhando o vento no quintal,
o ano dos formigueiros,
o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha,
o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã,
o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada,
o ano de entender o porquê
dos miseráveis do morro da Mangueira
perto de minha casa,

o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o "Ladrão de Bagdá",
e ficar sonhando com as coxas da odalisca no tapete voador,
o ano dos balões no céu, o ano do Mercury "grená" de meu pai
brilhando na luz da rua,
o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina,
o ano dos palavrões, o ano da "merda" e da "puta que pariu",
o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira
namorada que me tratava
como nada,
o ano de temer a Deus e de contar
meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão,
o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi
com pânico na alma,
o ano do Porcolino, do Pernalonga, o ano do Hortelino Trocaletra,
das mil e uma noites, o ano da mula-sem-cabeça e do mendigo
que dava mijo para a mãe, o ano
da camisa-de-vênus boiando na beira da praia, o ano do negro
comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da
febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano dos
padres jesuítas sofrendo de solidão nas clausuras e o ano
das lâmpadas tristes das noites do colégio,

o ano das velas de cera
na igreja, o ano dos paramentos, o ano do coroinha sem fé, o ano
do covarde,
o ano do perigo de ser currado nos fundos do colégio,
o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão,
o ano
da descoberta do orgulho,
o ano do Tarzan,
o ano do Super-Homem, o ano da porra,
o ano da punheta de esguicho que ia até o teto de ladrilho
por causa da primeira mulher de biquíni na praia,
o ano da punheta pela empregada de peitos grandes e que deixava
quase tudo,
o ano da dor nos rins, o ano
de entrar no porão com a menina,
o ano de sentir o gosto de cuspe da menina,
o ano de sentir o cheiro
do entrepernas da menina e ficar
com aquele cheiro até hoje,
o ano da primeira
mulher e, antes da primeira mulher,
o ano da descoberta da literatura
e de Rimbaud e o ano
de ficar escrevendo o dia inteiro
numa febre
de descobrir qualquer coisa que ainda acho que vou achar,

o ano agora sim, da primeira mulher,
uma aeromoça louca da Panair que parecia uma odalisca
caída do céu,
o ano do meu corpo e do corpo da mulher,
o ano das lágrimas quentes, o ano
da solidão,
o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros
visitados,
o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu,
com as mil mulheres tremendo a língua para fora e
de calça e sutiã nas calçadas, o ano dos bordéis antigos da luz mortiça,
o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo,
o ano oleoso, o ano das peles, o ano dos vasos de louça,
o ano de nada entender,
o ano da gonorréia, o ano de Thereza e de comer o primeiro amor e de flutuar
de paixão a um palmo das calçadas de Copacabana,

o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema,
de Leila Diniz,
o ano dos gritos
da mulher amada no colchão sujo e esfiapado que era um aparelho do Partido
Comunista numa noite de chuva,
o ano do amor e da revolução,
as duas coisas se confundindo
("serão as bombas ou meu coração batendo?" diria o Bogart em "Casablanca"),
o ano da UNE
pegando fogo,
o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius,

o ano do "Carcará", o ano do cinema
novo da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou,
o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo
do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas
arrancadas,
o ano dos gritos,
o ano dos guerrilheiros
suicidas, o ano de cortar
a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar
os pulsos com gilete
enferrujada,
o ano das cabeças
muito loucas, o ano de viver
perigosamente,

o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e
dos braços virando cobras na "bad trip" da beira da praia, o ano
das ondas vermelhas e céus tangerina,
o ano de Copacabana
virando gelatina colorida,
o ano de Janis Joplin de porre comigo
num puteiro baiano cantando ponto de candomblé,
o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues,
de Darlene Glória,
o ano das filhas nascendo dentro de um buraco estrelado,
o ano da esperança de sentido,
o ano da inocência,
o ano da ingenuidade, o
ano do leite,
o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros,
o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho,
o ano das formigas, o ano das bonecas,
o ano do olho furado, o ano de ficar
louco,

o ano do corno, o ano do babaca, o ano de comer mulher,
o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo,
o ano do "vamos ver", o ano do "que será o amanhã?",
o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar,
o ano da beira do
abismo,

o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim,
o ano de Collor, o ano do Itamar, o ano da hiperinflação,
o ano da inflação zero,
o ano dos Mamonas,
o ano dos caruarus, o ano dos carajás,
o ano dos genovevas, o ano dos cachorros quentes explodindo,
o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos,
o ano do último vôo livre de minha mãe.
1996,

o ano da expectativa,
o ano dos adiamentos, o ano da
esperança,
o ano
que ainda não começou e acaba hoje.
1996,
o ano
que vai começar em 97, feliz ano novo...

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Feliz Ano Novo!

A vocação para escritor

Jean-Paul Sartre

O Espírito Santo me contemplava. Acabara justamente de adotar a decisão de remontar ao Céu e abandonar os homens; eu dispunha apenas do tempo necessário para me oferecer; mostrava-lhes as chagas de minha alma, as lágrimas que embebiam meu papel, ele lia por cima de meu ombro, e sua cólera passava. Fora aplacado pela profundidade dos sofrimentos ou pela magnificência da obra? Eu me dizia: pela obra; às escondidas, pensava: pelos sofrimentos. É claro que o Espírito Santo só apreciava os escritos verdadeiramente artísticos, mas eu lera Musset, sabia que “os cânticos mais desesperados são os mais belos” e resolvera captar a Beleza com um desespero ardiloso. A palavra gênio sempre se me afigurava suspeita: estive a ponto de sentir por ela total aversão. Onde estaria a angústia, onde a provação, onde a tentação abortada, onde o mérito, enfim, se eu possuía o dom? Eu mal suportava o fato de ter um corpo e todos os dias a mesma cabeça, não ia deixar que me encerrassem num equipamento. Eu aceitava minha designação, desde que ela não se apoiasse me nada, que brilhasse, gratuita no vazio absoluto. Eu mantinha cociliábulos com o Espírito Santo: “Hás de escrever”, dizia-me. Eu torcia as mãos: “Que tenho eu, Senhor, para que me escolhêsseis?” “Nada de particular.” “Então, porque eu?” “Não há razão.” “Tenho pelo menos algumas facilidades de pena?” “Nenhuma. Crês que as grandes obras nascem das penas fáceis?” “Senhor, uma vez que sou tão nulo, como poderia produzir um livro” “Aplicando-te.” “Então, todo mundo pode escrever?” “Todo mundo pode, mas foi a ti que escolhi.” Esse truque era bastante cômodo: permitia-me proclamar minha insignificância e simultaneamente venerar em mim o autor de futuras obras primas. Eu era eleito, marcado, mas sem talento: tudo viria da minha longa paciência e de minhas desventuras; eu me negava a toda e qualquer singularidade: os traços de caráter afogam: eu não era fiel a nada, exceto ao compromisso real que me conduzia à glória por meio dos suplícios.

Trecho extraído de: SARTRE, Jean-Paul. As palavras, pp. 124-125, Rio de Janeiro, Nova fronteira, 2005.

sábado, 24 de dezembro de 2005

Poema de Natal

Camaradas,

Eu gostaria de desejar um Feliz Natal a todos vocês que me aturaram ao longo do ano. Recebam meus mais sinceros desejos de FELICIDADE e PAZ.

Feliz Natal e abraços a todos!

Marcos Lima

P.S.: Só para não perder o costume, segue um poeminha do Vinícius de Moraes...

Natal

Vinicius de Moraes
A grande ocorrência
Que nos conta o sino
É que, na indigência
Nasceu um menino.
Mil e novecentos
E cinqüenta e três
Anos são peremptos
Dessa meninez.
Muito tempo faz...
Mas ninguém olvida
Que é um dia de paz...
Porque fez-se a vida!

12.1953

MORAES, Vinícius de. In Para viver um grande amor (crônicas e poemas)

sábado, 17 de dezembro de 2005

Legião Urbana - Eduardo e Mônica, Uma Análise Psico-Neurótica

A música Eduardo e Monica da banda Legião Urbana esconderia uma implicância com o sexo masculino?

Adolar Gangorra*

O falecido Renato Russo era, sem dúvida, um ótimo músico e um excelente letrista. Escreveu verdadeiras obras de arte cheias de originalidade e sentimento. Como artista engajado que era, defendia veementemente seus pontos de vista nas letras que criava. E por isso mesmo, talvez algumas delas excedam a lógica e o bom senso. Como no caso da música Eduardo e Mônica, do álbum "Dois" da Legião Urbana, de 1986, onde a figura masculina (Eduardo) é tratada sempre como alienada e inconsciente, enquanto a feminina (Mônica) é a portadora de uma sabedoria e um estilo de vida evoluidíssimos. analisemos o que diz a letra.

Logo na segunda estrofe, o autor insinua que Eduardo seja preguiçoso e indolente (Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar; Ficou deitado e viu que horas eram) ao mesmo tempo que tenta dar uma imagem forte e charmosa à Mônica (enquanto Mônica tomava um conhaque noutro canto da cidade como eles disseram). Ora, se esta cena tiver se passado de manhã como é provável, Eduardo só estaria fazendo sua obrigação: acordar. Já Mônica revelaria-se uma cachaceira profissional, pois virar um conhaque antes do almoço é só para quem conhece muito bem o ofício.

Mais à frente, vemos Russo desenhar injustamente a personalidade de Eduardo de maneira frágil e imatura (Festa estranha, com gente esquisita). Bom, "Festa estranha" significa uma reunião de porra-loucas atrás de qualquer bagulho para poderem fugir da realidade com a desculpa esfarrapada de que são contra o sistema. "Gente esquisita" é, basicamente, um bando de sujeitos que têm o hábito gozado de dar a bunda após cinco minutos de conversa. Também são as garotas mais horrorosas da via-láctea. Enfim, esta era a tal "festa legal" em que Eduardo estava. O que mais ele podia fazer? Teve que encher a cara pra agüentar aquele pesadelo, como veremos a seguir.
Assim temos (- Eu não estou legal. Não agüento mais birita). Percebe-se que o jovem Eduardo não está familiarizado com a rotina traiçoeira do álcool. É um garoto puro e inocente, com a mente e o corpo sadios. Bem ao contrário de Mônica, uma notória bêbada sem-vergonha do underground.

Adiante, ficamos conhecendo o momento em que os dois protagonistas se encontraram (E a Mônica riu e quis saber um pouco mais Sobre o boyzinho que tentava impressionar). Vamos por partes: em "E a Mônica riu" nota-se uma atitude de pseudo-superioridade desumana de Mônica para com Eduardo. Ela ri de um bêbado inexperiente! Mais à frente, é bom esclarecer o que o autor preferiu maquiar. Onde lê-se "quis saber um pouco mais" leia-se" quis dar para"! É muita hipocrisia tentar passar uma imagem sofisticada da tal Mônica.

A verdade é que ela se sentiu bastante atraída pelo "boyzinho" que tentava impressionar"! É o máximo do preconceito leviano se referir ao singelo Eduardo como "boyzinho". Não é verdade. Caso fosse realmente um playboy, ele não teria ido se encontrar com Mônica de bicicleta, como consta na quarta estrofe (Se encontraram então no parque da cidade A Mônica de moto e o Eduardo de camelo). Se alguém aí age como boy, esta seria Mônica, que vai ao encontro pilotando uma ameaçadora motocicleta. Como é sabido, aos 16 (Ela era de Leão e ele tinha dezesseis) todo boyzinho já costuma roubar o carro do pai, principalmente para impressionar uma maria-gasolina como Mônica.

E tem mais: se Eduardo fosse mesmo um playboy, teria penetrado com sua galera na tal festa, quebraria tudo e ia encher de porrada o esquisitão mais fraquinho de todos na frente de todo mundo, valeu?

Na ocasião do seu primeiro encontro, vemos Mônica impor suas preferências, uma constante durante toda a letra, em oposição a uma humilde proposta do afável Eduardo (O Eduardo sugeriu uma lanchonete Mas a Mônica queria ver filme do Godard). Atitude esta, nada democrática para quem se julga uma liberal.
Na verdade, Mônica é o que se convencionou chamar de P.I.M.B.A (Pseudo Intelectual Metido à Besta e Associados, ou seja, intelectuerdas, alternativos, cabeças e viadinhos vestidos de preto em geral), que acham que todo filme americano é ruim e o que é bom mesmo é filme europeu, de preferência francês, preto e branco, arrastado para caralho e com bastante cenas de baitolagem.

Em seguida Russo utiliza o eufemismo "menina" para se referir suavemente à Mônica (O Eduardo achou estranho e melhor não comentar. Mas a menina tinha tinta no cabelo). Menina? Pudim de cachaça seria mais adequado. Ainda há pouco vimos Mônica virar um Dreher na goela logo no café da manhã e ele ainda a chama de menina? Além disto, se Mônica pinta o cabelo é porque é uma balzaca querendo fisgar um garotão viril. Ou então porque é uma baranga escrota.

O autor insiste em retratar Mônica como uma gênia sem par. (Ela fazia Medicina e falava alemão) e Eduardo como um idiota retardado (E ele ainda nas aulinhas de inglês). Note a comparação de intelecto entre o casal: ela domina o idioma germânico, sabidamente de difícil aprendizado, já tendo superado o vestibular altamente concorrido para Medicina. Ele, miseravelmente, tem que tomar aulas para poder balbuciar "iéis", "nou" e "mai neime is Eduardo"! Incomoda como são usadas as palavras "ainda" e "aulinhas", para refletir idéias de atraso intelectual e coisa sem valor, respectivamente.

Na seqüência, ficamos a par das opções culturais dos dois (Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, De Van Gogh e dos Mutantes, De Caetano e de Rimbaud). Temos nesta lista um desfile de ícones dos P.I.M.B.A., muito usados por quem acha que pertence a uma falsa elite cultural. Por exemplo, é tamanha uma pretensa intimidade com o poeta Manuel de Souza Carneiro Bandeira Filho, que usou-se a expressão "do Bandeira". Francamente, "Bandeira" é aquele juiz que fica apitando impedimento na lateral do campo. O sujeito mais normal dessa moçada aí cortou a orelha por causa de uma sirigaita qualquer. Já viu o nível, né? Só porra-louca de primeira. Tem um outro peroba aí que tem coragem de rimar "Êta" com "Tiêta" e neguinho ainda diz que ele é gênio!

Mais uma vez insinua-se que Eduardo seja um imbecil acéfalo (E o Eduardo gostava de novela) e crianção (E jogava futebol de botão com seu avô). A bem da verdade, Eduardo é um exemplo. Que adolescente de hoje costuma dar atenção a um idoso? Ele poderia estar jogando videogame com garotos de sua idade ou tentando espiar a empregada tomar banho pelo buraco da fechadura, mas não. Preferia a companhia do avô em um prosaico jogo de botões! É de tocar o coração. E como esse gesto magnânimo foi usado na letra? Foi só para passar a imagem de Eduardo como um paspalho energúmeno. É óbvio, para o autor, o homem não sabe de nada. Mulher sim, é maturidade pura.

Continuando, temos (Ela falava coisas sobre o Planalto Central, Também magia e meditação). Falava merda, isso sim! Nesses assuntos esotéricos é onde se escondem os maiores picaretas do mundo. Qualquer chimpanzé lobotomizado pode grunhir qualquer absurdo que ninguém vai contestar. Por que? Porque não se pode provar absolutamente nada. Vale tudo! É o samba do crioulo doido. E quem foi cair nessa conversa mole jogada por Mônica? Eduardo é claro, o bem intencionado de plantão. E ainda temos mais um achincalhe ao garoto (E o Eduardo ainda estava no esquema escola - cinema - clube - televisão). O que o Sr. Russo queria? Que o esquema fosse "bar da esquina - terreiro de macumba - sauna gay - delegacia"?? E qual é o problema de se ir a escola?!?

Em seguida, já se nota que Eduardo está dominado pela cultura imposta por Mônica (Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato e foram viajar). Por ordem:
1) Teatro e artesanato não costumam pagar muito imposto.
2) Teatro e artesanato não são lá as coisas mais úteis do mundo.
3) Quer saber? Teatro e artesanato é coisa de viado!!!

Agora temos os versos mais cretinos de toda a letra (A Mônica explicava pro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar). Mais uma vez, aquela lengalenga esotérica que não leva a lugar algum. Vejamos: Mônica trabalha na previsão do tempo? Não. Mônica é geóloga? Não. Mônica é professora de química? Não. A porra da Mônica é alguma aviadora? Também não. Então que diabos uma motoqueira transviada pode ensinar sobre céu, terra, água e ar que uma muriçoca não saiba?

Novamente, Eduardo é retratado como um debilóide pueril capaz de comprar alegremente a Torre Eiffel após ser convencido deste grande negócio pelo caô mais furado do mundo. Santa inocência... Ainda em (Ele aprendeu a beber), não precisa ser muito esperto pra sacar com quem... é claro, com a campeã do alambique! Eduardo poderia ter aprendido coisas mais úteis, como o código morse ou as capitais da Europa, mas não. Acharam melhor ensinar para o rapaz como encher a cara de pinga. Muito bem, Mônica! Grande contribuição!

Depois, temos (deixou o cabelo crescer). Pobre Eduardo. Àquela altura, estava crente que deixar crescer o cabelo o diferenciaria dos outros na sociedade. Isso sim é que é ativismo pessoal. Já dá pra ver aí o estrago causado por Mônica na cabeça do iludido Eduardo.

Sempre à frente em tudo, Mônica se forma quando Eduardo, o eterno micróbio, consegue entrar na universidade (E ela se formou no mesmo mês em que ele passou no vestibular). Por esse ritmo, quando Eduardo conseguir o diploma, Mônica deverá estar ganhando o seu oitavo prêmio Nobel.

Outra prova da parcialidade do autor está em (porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação). É interessante notar que é o filho do Eduardo e não de Mônica, que ficou de segunda época. Em suma, puxou ao pai e é burro que nem uma porta. O que realmente impressiona nesta letra é a presença constante de um sexismo estereotipado. O homem é retratado como sendo um simplório alienado que só é salvo de uma vida medíocre e previsível graças a uma mulher naturalmente evoluída e oriunda de uma cultura alternativa redentora. Nesta visão está incutida a idéia absurda que o feminino é superior e o masculino, inferior.

É sabido que em todas culturas e povos existentes o homem sempre oprimiu a mulher. Porém, isso não significa, em hipótese alguma, que estas sejam melhores que os homens. São apenas diferentes. Se desde o começo dos tempos o sexo feminino fosse o dominador e o masculino o subjugado, os mesmos erros teriam sido cometidos de uma maneira ou de outra. Por que? Ora, porque tanto homens quanto mulheres e colunistas sociais fazem parte da famigerada raça humana. E é aí que sempre morou o perigo. Não importa que seja Eduardo, Mônica ou até... Renato!

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*Adolar Gangorra tem 71 anos, é editor do periódico humorístico Os Reis da Gambiarra e não perde um show sequer dos "The Fevers".

A falta de Érico Veríssimo

Carlos Drummond de Andrade

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.

domingo, 11 de dezembro de 2005

Fala do velho do restelo ao astronauta

José Saramago

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

Loucos e Santos

Oscar Wilde

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Parto sem complicações

O marido e a mulher foram ao hospital para ter um bebê. Chegando lá, o médico disse que tinha inventado uma máquina que dividia as dores do parto com o pai da criança. Perguntando se eles queriam experimentar o novo invento, de pronto obteve aceitação do casal.
O médico regulou a máquina para transferir somente 10% da dor para o pai, dizendo que seria o bastante, pois sendo um homem ele não conseguirira suportar mais do que isso. A mulher começou o trabalho de parto e o marido estava se sentindo muito bem. Resolveram aumentar a taxa de dor para 20%, e o marido continuava bem. O médico, intrigado, mediu a pressão, conferiu o coração e tudo estava normal. Assim, resolveu ir aos 50%.
Depois de um tempo, o bebê estava quase nascendo e, como o marido continuava bem, resolveram transferir a dor do parto 100% para o marido e proporcionar a mulher um parto sem dor. Dessa forma, a mulher teve o bebê super tranqüila.
Ela e o marido estavam muito felizes.
Ao chegarem em casa, encontraram o vizinho morto na varanda!

História explicativa

Daniel Quinn

"Podes passar o resto do dia tentando descobrir qual a história que as pessoas da tua cultura têm vindo a encenar no mundo nos últimos dez mil anos. Lembras-te do que versa ela?"

"Do que versa a história?"

"Ela versa o sentido do mundo, as intenções divinas no mundo e o destino humano".

"Bem, posso contar-te histórias sobre essas coisas, mas não conheço uma história única".

"É a única história que todos na tua cultura conhecem e aceitam".

"Não creio que isso ajude muito".

"Talvez ajude se eu te disser que se trata de uma história explicativa, do gênero 'Como o elefante obteve a sua tromba' ou 'Como o leopardo obteve as suas manchas'".

"Está bem".

"E, imaginas tu, esta vossa história explica o quê?"

"Santo Deus, não faço a menor idéia".

"Isso já deveria ser claro a partir do que eu te disse. Ela explica como o mundo veio a ser o que é. Desde o início até hoje".

"Entendo," disse eu, e olhei pela janela durante alguns instantes. "O fato é que não tenho consciência de conhecer uma história que tal. Como eu disse, conheço histórias, mas nada que se pareça com uma história única".

Ismael refletiu um pouco. "Uma aluna minha, dentre os discípulos que mencionei ontem, sentiu-se na obrigação de me explicar o que procurava ela. Perguntou-me: 'Ninguém fica alarmado por quê? Ouço as pessoas falarem sobre o fim do mundo na lavanderia, e não parecem mais alarmadas do que se estivessem a comparar detergentes. Falam da destruição da camada de ozônio e da destruição total da vida. Falam da devastação das florestas tropicais, da poluição mortal que permanecerá conosco durante milhares e milhões de anos, da extinção diária de dezenas de espécies; do fim do próprio processo de desenvolvimento das espécies. E parecem de uma calma olímpica'.

"Eu disse-lhe: 'É isso então que desejas saber — por que razão as pessoas não ficam alarmadas com a destruição do mundo?' Ela pensou um pouco e respondeu: 'Não, eu sei por que razão não se alarmam elas. Não se alarmam por acreditarem no que lhes contaram'".

"Como assim?" perguntei.

"O que é que contaram às pessoas que as impede de se alarmarem, que as mantêm relativamente calmas enquanto assistem aos danos catastróficos que estão a infligir ao planeta?"

"Não sei".

"Contaram-lhes uma história explicativa. Deram-lhes uma explicação de como o mundo veio a ser o que é, e isto silencia o seu alarme. Esta explicação é totalmente abrangente, incluindo a deterioração da camada de ozônio, a poluição dos oceanos, a destruição das florestas tropicais e até a extinção humana — e isso as satisfaz. Ou talvez seja mais correto dizer que as pacifica. Participam da engrenagem durante o dia, narcotizam-se com drogas ou com televisão à noite e tentam não pensar muito seriamente sobre o mundo que estão a deixar para os seus filhos enfrentarem".

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Texto extraído do livro Ishmael, de Daniel Quinn.

domingo, 27 de novembro de 2005

Guido Cavalcanti

Per gli occhi fere um spirito sottile
Guido Cavalcanti

Per gli occhi fere un spirito sottile
Che fa in la mente spirito destare,
Dal qual si muove spirito d’amare,
Che’ogn’altro spiritello fa gentile.

Sentir non può di lui spirito vile,
Di contanta virtú spirito appare.
Questo é lo spiritel, che fa tremare
Lo spiritel che fa la donna umile.

E poi da questo spirito move
Um altro spirito soave,
Che segue um spiritello di mercede.

Lo quale spiritel spiriti piove,
Che di ciacuno spirit’ há la chiave,
Per forza d’uno spirito, Che ‘l vede.


Pelo olhar fere o espírito sutil
Augusto de Campos

Pelo olhar fere o espírito sutil
Que faz na mente o espírito acordar,
Do qual se move o espírito de amar
Que faz todo outro espírito servil.

Não o descobrirá espírito vil,
Tal é o dom deste espírito sem par,
Espírito que faz tremer o ar
Do espírito que faz dama gentil.

E deste mesmo espírito se move
Um outro doce espírito suave,
Que um espírito segue de mercê.

O qual espírito espíritos chove
E dos espíritos conhece a chave,
Por força de um espírito, que vê.

Chi è questa che vien, ch’ogni uom la mira
Guido Cavalcanti

Chi è questa che vien, ch’ogni uom la mira,
Che fa di clarità l’aer tremare,
E mena seco Amor, sì che parlare
Null’ uom ne puote, ma ciascun sospira?

Ahí, Dio, che sombra quando li occhi gira?
Dicalo Amor, ch’io nol saprei contare:
Contanto d’umità donna mi pare,
Che ciascun’altra in ver’di lei chiam’ira.

Non si potria contar la sua piacenza,
Che’a lei s’inchina ogni gentil virtute,
E la beltate per sua Dea la mostra.

Non fu si alta già la mente mostra,
E no si è posta in noi tanta salute,
Che propriamente n’abbiam conoscenza.

Quem é esta a que toda gente admira
Augusto de Campos

Quem é esta a que toda gente admira,
Que faz de claridade o ar tremular,
Com tanto amor, e deixa sem falar,
E cada um por ela só suspira?

Ah, Deus, como ela é, quando nos mira?
Que diga Amor, eu não o sei contar.
De tal modéstia é feito o seu olhar,
Que às outras todas faz que eu chame de ira.

Nem sei dizer do seu merecimento.
Toda virtude a ela está rendida,
Beleza a tem por Deusa e assim a exalta.

A nossa mente nunca foi tão alta,
Nem há ninguém que tenha tanta vida
Para alcançar um tal conhecimento.

Farmácia

A velhinha com mais de 80 anos, mas toda elétrica entra na farmácia:
- Vocês têm analgésicos?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm remédio contra reumatismo?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm camisinha lubrificada?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm Viagra?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm pomada anti-ruga?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm gel para hemorróidas?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm bicarbonato?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm antidepressivos?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm soníferos?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm remédio para a memória?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm fraldas para adultos?
- Temos sim senhooooora. Minha Senhora Aqui é uma farmacia, nós temos isso tudo. Qual é seu problema?
- É que vou casar com meu noivo, de 85 anos, no fim do mês. E nós gostaríamos de saber se podemos deixar nossa lista de casamento aqui com vocês...

sábado, 19 de novembro de 2005

Remédio para tosse

O farmacêutico entra na sua farmácia e nota um homem petrificado, com os olhos esbugalhados, mão na boca, encostado em uma das paredes.
Ele pergunta para o auxiliar:
- Que significa isto. Quem é essa pessoa que está encostada naquela parede?
- Ah! É um cliente. Ele queria comprar remédio para tosse. Como está caro e ele não tem dinheiro, vendi para ele um laxante.
- Ficou maluco! Desde quando laxante é bom para tosse?!
- É excelente. Veja o medo que ele tem de tossir!

O Imenso Possível do Abismo de Tudo

A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha ideia de vivê-la. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras... Poucos como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar assim.

A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.

Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distracção, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o reles que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive sequer castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria recompor, sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.

Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um pendão de derrota - pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao sumirmo-nos nas areias movediças, ninguém sabe se como protesto, se como desafio, se como gesto de desespero. Ninguém sabe, porque ninguém sabe nada, e as areias engolfam os que têm pendões como os que não têm. E as areias cobrem tudo, a minha vida, a minha prosa, a minha eternidade.

Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória.

Trecho extraído de: PESSOA, Fernando. Livro do desassossego, composto por Bernardo Soares, São Paulo, Cia das Letras, 2003.

sábado, 5 de novembro de 2005

O arquivo

Victor Giudice

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-se a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase no fim do expediente, foi chamado no escritório principal.
Respirou descompassado.
- Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor. joão abaixou a cabeça em sinal de modéstia.
- Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
- Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o.
Todos sorriam.
- De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacifico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavanderia, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
- Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias, e sua função, a partir de amanha, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
- Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
- Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses teráque pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.

GIUDICE, Victor. In Contos jovens, p. 35-37.

Apostila

Álvaro de Campos


Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Mílton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem factício...

Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.


Álvaro de Campos (11-4-1928)

sábado, 29 de outubro de 2005

O Horla

Guy de Maupassant

8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente.
Adoro a casa onde cresci. Das janelas, vejo o Sena, correndo ao lado do jardim, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras, o grandioso e extenso Sena, que vai a Rouen e a Havre, apinhado de barcos que passam para lá e para cá.
Lá embaixo, a esquerda, está a grande cidade de Rouen, com seus telhados azuis e pontiagudas torres góticas. Estas últimas são incontáveis, largas ou estreitas, dominadas pela espiral da catedral e cheias de sinos que tocam no ar azul de belas manhãs, enviando até minha casa seu doce e distante tinido, canção de metal que a brisa impele em minha direção, ora forte, ora débil, conforme a intensidade do vento.
Como a manhã estava agradável!
Lá pelas onze horas, uma longa fila de barcos. puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca, que mal conseguia resfolegar enquanto soltava espessa fumaça, passou em frente a meu portão.
Depois de duas escunas inglesas. com a bandeira vermelha ondulando ao vento, passou um magnífico barco brasileiro de três mastros, todo branco, muito limpo e lustroso. Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser que a visão do navio deu-me grande prazer.
12 de maio. Tenho estado um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente, ou antes, desalentado.
De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar. Acordo com a melhor disposição, sentindo vontade de cantar. Por quê? Desço até a beira da água e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê?
Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos?
Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas idéias e até em nosso coração.
Como esse mistério do Invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nossos sentidos miseráveis, olhos incapazes de perceber o que for muito grande ou muito pequeno, esteja muito perto ou muito longe: nem os habitantes de uma estrela, nem os de uma gota de água. Nem com ouvidos que nos enganam, pois transmitem-nos as vibrações do ar em notas sonoras. São fadas que realizam o milagre de mudar essas vibrações em sons e, por meio dessa metamorfose, fazem surgir a música que transforma o silencioso movimento da natureza... nem com o sentido do olfato, menos aguçado que o de um cão... nem com o sentido do paladar, que mal percebe a idade do vinho!
Como seria bom se tivéssemos outros órgãos que realizassem outros milagres a nosso favor! Quantas coisas novas poderíamos descobrir a nossa volta!
16 de maio. Positivamente, estou doente! E estava tão bem no mês passado! Estou com febre, horrivelmente febril, ou melhor, em um estado de debilitação febril, que faz a alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que é, sem dúvida, o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue.
17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.
25 de maio. Nenhuma mudança! Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível sensação de intranqüilidade, como se a noite escondesse alguma catástrofe ameaçadora. Janto às pressas e então procuro ler, mas não compreendo as palavras e mal distingo as letras. Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama.
Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo... de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada... Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto... o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente?
Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me.
Durmo... bastante tempo... talvez duas ou três horas... Então um sonho... não... um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo... Sinto e sei disso... e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta... aperta com toda a força a fim de estrangular-me.
Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar... mas não consigo. Quero mover-me... não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando... não consigo!
E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor. Acendo uma vela e descubro que estou sozinho. Depois dessa crise, que acontece todas as noites, finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã.
2 de junho. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está adiantando de nada e as duchas não produzem resultado. As vezes, a fim de ficar bem cansado, embora já esteja bastante fatigado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, leve e suave, impregnado do cheiro de ervas e folhas, instilaria sangue novo em minhas veias e daria nova energia a meu coração. Enveredava por uma larga estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma estreita trilha entre duas fileiras de árvores de uma altura descomunal, que formavam um espesso teto de um verde quase negro entre o céu e eu.
Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas um estranho arrepio de agonia. Apressei o passo, apreensivo por estar sozinho na floresta, estupidamente amedrontado sem razão, por causa da completa solidão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me.
Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a larga trilha reta, vazia, cercada de altas árvores, horrivelmente vazia; à minha frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível.
Fechei os olhos. Por quê? Comecei a rodar como pião, bem depressa. Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E, então, que idéia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à avenida que me conduzira ao centro da floresta.
2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.
2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia.
Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! A cidade está sobre uma colina e fui conduzido ao jardim público, nos limites da cidade. Dei um grito de assombro! Uma enorme baía estendia-se diante de mim, até onde os olhos alcançavam, entre duas colinas que a neblina impedia de serem vistas. No meio dessa imensa baía, sob um claro céu dourado, erguia-se uma estranha colina, sombria e pontiaguda, no meio da areia. O sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um fantástico monumento em seu cume.
Quando raiou o dia, fui para lá. Como na noite anterior, a maré estava baixa e vi diante de mim a admirável abadia, cada vez mais próxima. Depois de andar algumas horas, alcancei a enorme massa de rochas sobre a qual se localiza a cidadezinha, dominada pela grande igreja. Depois de subir a rua íngreme e estreita, entrei no mais admirável edifício gótico já construído para Deus na terra, grande como uma cidade, cheio de salas de teto baixo que parecem enterradas sob abóbadas e de grandiosas galerias sustidas por delicadas colunas.
Entrei nessa gigantesca jóia de granito, leve como renda, coberta de torres, com esguios campanários de escadas em caracol, que erguem as estranhas cabeças eriçadas de quimeras, de demônios, de animais fantásticos, com flores monstruosas, para o céu azul durante o dia e negro à noite, e são ligados por arcos finamente entalhados.
Quando cheguei ao ponto mais alto da abadia, disse ao monge que me acompanhava:
Padre, como devem ser felizes aqui! Ao que respondeu:
- Venta muito, monsieur!
Começamos a conversar, enquanto assistíamos à subida da maré, que corria pela areia, e parecia cobri-la com uma couraça de aço.
O monge contou-me histórias, todas as velhas histórias do lugar, lendas, nada mais que lendas.
Uma delas impressionou-me bastante. Os camponeses, aqueles que fazem parte do lugar, dizem que à noite podem-se ouvir vozes nas areias e depois duas cabras balindo, uma com voz forte, a outra com voz fraca. As pessoas incrédulas afirmam que é apenas o grito das aves do mar, que às vezes parecem balidos e, outras, lamentos humanos. Todavia, pescadores que se atrasaram para voltar juram ter encontrado um velho pastor vagando, entre uma maré e outra, pelas areias ao redor da cidadezinha. Traz a cabeça totalmente coberta por um manto e é seguido por um bode com cara de homem e uma cabra com cara de mulher, ambos com longos cabelos brancos, falando sem parar e discutindo em uma língua desconhecida. Calam-se de repente e começam a balir a plenos pulmões.
- Acredita nisso? - perguntei ao monge.
- Não sei ao certo - retrucou.
Continuei:
- Se existem outras criaturas na terra além de nós, como ainda não as conhecemos e por que vocês ainda não as viram? Como é que eu ainda não as vi?
Respondeu:
- Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe aqui, aí está o vento, a maior força que existe na natureza, que derruba homens e edifícios, destrói penhascos e joga grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que assobia, que suspira, que ....... já o viu? Pode vê-lo? Apesar disso, no entanto, ele existe!
Calei-me diante desse raciocínio tão simples. Aquele homem era um filósofo ou, talvez, um tolo. Não saberia dizer qual, exatamente, por isso fiquei quieto. O que dissera, eu já havia pensado muitas vezes.
3 de julho. Dormi mal. Certamente há alguma influência febril aqui, pois meu cocheiro está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei:
- O que tem, Jean?
- Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Desde que partiu, monsieur, parece que estou enfeitiçado. Entretanto, os outros criados estão todos bem. Estou com muito medo de ter outro ataque.
4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente.
5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar!
Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi meio copo de água, notando, por acaso, que a garrafa de água estava cheia até o gargalo.
Fui para a cama e passei por um de meus sonhos terríveis, do qual acordei cerca de duas horas depois, com um choque ainda maior.
Imagine um homem adormecido sendo assassinado e que acorda com uma faca no pulmão e cuja respiração está arquejante, coberto de sangue, que não consegue mais respirar, está quase morrendo e não compreende... aí está.
Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida.
Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia?
Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama.
6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite... ou melhor, eu o bebi!
Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará?
10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. Decididamente, estou louco! Todavia...
A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados.
Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado.
Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em musselina branca e de amarrar as tampas. Esfreguei os lábios, a barba e as mãos com grafita e me deitei.
Um sono irresistível se apossou de mim, seguido de um terrível despertar. Não me movera, não havia marcas de grafita nos lençóis. Corri até a mesa. A musselina ao redor dos frascos estava intacta. Desamarrei as tampas, tremendo de medo. Toda a água fora bebida, assim como o leite! Meu Deus! Preciso partir imediatamente para Paris.
Paris, 12 de julho. Devo ter perdido a cabeça nos últimos dias. Devo ser joguete de minha imaginação exacerbada, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado sob o poder daquelas influências até agora sem explicação, chamadas sugestões. Em todo caso, meu estado mental chegava às raias da loucura, e vinte e quatro horas em Paris bastaram para restaurar meu equilíbrio.
Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que instilaram em minha alma ar novo e revigorante, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou minha cura. É certo que a solidão é perigosa para as mentes ativas. Precisamos de homens que saibam pensar e conversar. Quando ficamos sozinhos por muito tempo, povoamos o espaço com fantasmas.
Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. No meio dos empurrões da multidão, pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjeturas da semana anterior, porque acreditara (sim, acreditara) que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nosso cérebro é fraco, como se assusta à toa e é induzido a erro por um pequeno fato incompreensível!
Em vez de dizer apenas: "Não entendo porque não conheço a causa", imaginamos imediatamente mistérios terríveis e forças sobrenaturais.
14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz.
Digam-lhe: "Divirtam-se", e o povo se diverte. Digam-lhe: "Vão lutar com o vizinho", e o povo vai e luta. Digam-lhe: "Votem pelo imperador", e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: "Votem pela República". e o povo vota pela República.
Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão.
16 de julho. Ontem vi uma coisa que me deixou muito preocupado.
Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e que dá muita atenção às notáveis manifestações causadas pela influência do hipnotismo e da sugestão.
Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que me declarei completamente incrédulo.
- Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas - disse ele. - Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir a ineficiência dos sentidos por meio do intelecto. Enquanto o intelecto manteve-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos. Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: "Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda". Entretanto - continuou o Dr. Parent -, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes.
Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe:
- Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame?
- Sim, certamente.
Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente, como se quisesse encantá-la. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração batendo e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca crispar-se e o peito arfar. Em dez minutos estava dormindo.
- Fique atrás dela - disse-me o médico.
Sentei-me atrás dela. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse:
- Isto é um espelho. O que vê nele?
Ela respondeu: - Vejo meu primo.
- O que ele está fazendo?
- Torcendo o bigode.
- E agora?
- Está tirando uma fotografia do bolso.
- Fotografia de quem?
- Dele mesmo.
Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite.
- Como é a foto?
- Ele está em pé, com o chapéu na mão.
Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho.
As jovens ficaram assustadas e exclamaram: - Chega! Já chega!
Mas o médico ordenou a Mme. Sable: - Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem.
Depois disso, o médico acordou-a.
Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando<> à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas desse tipo.
Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse-me:
Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. - Vesti-me às pressas e fui recebê-la.
Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu, disse-me: - Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor.
- Que favor, minha prima?
- Não quero pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos.
- O quê? Você?
- Sim, eu, ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los.
Fiquei tão atônito que gaguejava as respostas. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que a garganta lhe travava os soluços.
Sabia que era muito rica, por isso continuei: - Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los?
Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu: - Sim... sim, tenho certeza.
- Ele lhe escreveu?
Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu:
- Sim, escreveu-me.
- Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem.
- Recebi a carta hoje pela manhã.
- Pode mostrá-la para mim?
- Não... não... continha assuntos íntimos... coisas muito pessoais... Queimei-a.
- Então seu marido está endividado?
Hesitou mais uma vez e murmurou: - Não sei.
Disse-lhe sem cerimônia: - No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima.
Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor e disse:
- Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim...
Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me! Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera.
- Por favor, imploro-lhe... se soubesse o que estou sofrendo... preciso do dinheiro hoje.
Fiquei com pena: - Você terá daqui a pouco, juro.
- Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito.
- Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? - continuei.
- Sim.
- Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir?
- Sim.
- Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão.
Refletiu por alguns momentos e respondeu: - Mas é como Se meu marido precisasse deles...
Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me com um sorriso e disse: - Acredita, agora?
- Sim, não tenho outra saída.
- Vamos à casa de sua prima.
Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse:
- Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata.
Acordou-a. Peguei a carteira e disse: - Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima.
Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência.
Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado.
19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: "Pode ser!"
21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére... mas, e no Mont-Saint-Michel?... e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa.
30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem.
2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido e passo os dias a olhar o Sena.
4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Só alguém muito esperto poderia dizer.
6 de agosto. Desta vez não estou louco. Eu vi... eu vi... não posso mais duvidar... eu o vi!
As duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras... entre as rosas de outono que começam a cair. Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi perfeitamente a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, terrível mancha vermelha, quase diante de meus olhos. Em desespero, corri para agarrã4a. Nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações.
Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, pois estou certo agora, como certo estou da alternância entre o dia e a noite, de que existe perto de mim uma criatura invisível, que vive a leite e água, pode tocar objetos, pegá-los e mudá-los de lugar, sendo, portanto, dotado de natureza material, embora seja imperceptível a nossos sentidos. Vive como eu, debaixo de meu teto...
7 de agosto. Dormi tranqüilamente. Ele bebeu a água da garrafa, mas não perturbou meu sono. Pergunto a mim mesmo se não estarei louco. Agora mesmo, passeando ao sol à beira do rio, tive dúvidas quanto a minha sanidade. Não dúvidas vagas como as que tive ultimamente, mas dúvidas absolutas e precisas. Já vi gente louca e conheci alguns loucos que são inteligentes, lúcidos, até mesmo perspicazes em tudo, exceto em um ponto. Falavam pronta, clara e profundamente sobre todos os assuntos, até que, de repente, a mente ia de encontro aos escolhos de sua loucura, partia-se ali e se dispersava e debatia naquele mar furioso e terrível, cheio de ondas agitadas, de neblina e pés-de-vento, que se chama Loucura.
Com certeza eu deveria pensar que estava louco, completamente louco, se não estivesse consciente, não conhecesse perfeitamente meu estado, não o analisasse com a mais completa lucidez. De fato, devo ser apenas um homem racional, sofrendo uma alucinação. Deve ter surgido em minha mente algum distúrbio desconhecido, um dentre aqueles que os fisiólogos modernos tentam observar e confirmar. Esse distúrbio deve ter causado profunda brecha na minha mente e na seqüência lógica das idéias. Fenômenos semelhantes acontecem nos sonhos que nos levam a imaginar coisas irreais, sem nos causar surpresa, porque o aparelho de verificação, nosso órgão de controle está adormecido, enquanto a faculdade da imaginação está acordada e ativa.
Não é possível que uma das imperceptíveis unidades do teclado cerebral tenha ficado paralisada em mim? Alguns homens perdem a lembrança de nomes próprios, de verbos ou números, os simplesmente de datas, como conseqüência de algum acidente. A localização de todas as variações de pensamento já está estabelecida atualmente. Por que, então, seria surpreendente se minha faculdade de controlar a irrealidade de algumas alucinações estivesse temporariamente adormecida?
Pensava em tudo isso, enquanto andava pela beira da água. O sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos.
Aos poucos, entretanto, uma indefinível sensação de mal-estar se apossava de mim. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante e chamando-me de volta. Senti aquele penoso desejo de voltar que nos oprime quando deixamos um doente querido em casa e somos tomados por um pressentimento de que piorou.
Assim, voltei contra a minha vontade, certo de que encontraria alguma má noticia à espera, talvez uma carta ou telegrama. Não havia nada, e fiquei mais surpreso e inquieto do que se tivesse tido outra visão fantástica.
8 de agosto. Ontem, passei uma noite horrível. Não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir.
1 de agosto. Nada, mas estou com medo.
10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã?
11 de agosto. Nada ainda. Não consigo ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora.
12 de agosto. Dez horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade - sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen... e não consigo. Por que razão?
13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço.
14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos.
De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os! Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror!
15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar?
Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Este ser irreconhecível, este pirata de raça sobrenatural?
Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha casa. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso.
16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece: - Vá... a Rouen!
Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
Ao voltar para o coche, pretendia dizer: "Para a estação!", em vez disso gritei... não disse, gritei, tão alto que os passantes voltaram-se: - Para casa! - e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim.
17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã! Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo.
Depois de ler até a uma da manhã, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos!
Não havia lua, mas as estrelas lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles?
Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água!
Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi, eu vi, sim, vi com meus próprios olhos, outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido, que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-la, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim... a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si.
Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim!
Mas... mas... amanhã... ou mais tarde... algum dia... conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?
18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora...
19 de agosto. Eu sei... eu sei... eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: "Curiosa noticia chega-nos do Rio de Janeiro. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à loucura contagiosa que atacou a população da Europa, na Idade Média, está, neste momento, grassando na província de São Paulo. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento.
"O professor Pedro Henrique, acompanhado por vários médicos, foi à província de São Paulo, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão."
Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio brasileiro de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso!
Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava.
Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão... sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças imprudentes, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o... o... como se chama... o... Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo... o... sim... está gritando... estou ouvindo... Não consigo... Ele o repete... o... Horla... ou,... o Horla... ele chegou!
Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a flecha, com a espada, com a pólvora. Mas o Horla fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós!
Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de... serei capaz de... mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime.
Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: "Será que vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge... já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe".
E continuei a pensar: "Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça". Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar?
Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tenso como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa.
Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes?
Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância!
Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo... esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer!
O que está acontecendo comigo? É ele, o Horla, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo!
19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então... então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, morde-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alerta.
Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo.
À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atrai-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele.
Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti... tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha.
Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Quê! Bem? Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele... E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo.
Como eu estava amedrontado! E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos.
Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho.
Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer.
20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água, e então teria nosso veneno algum efeito em seu corpo impalpável? Não... não há dúvida sobre isso... Então... então...
21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei venezianas de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo!
10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito... está feito... mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada.
Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as venezianas e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando.
De repente, senti que ele estava lá, e uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, fechei as venezianas de ferro, fui até a porta, tranquei-a rapidamente com um cadeado e guardei a chave no bolso.
Percebi de súbito que ele se movia nervosamente a minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prende-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta.
Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que não se podia ver, mas que pesavam, oh, como pesavam, em minha alma.
Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente.
Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando:
- Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! - Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas.
Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Horla!
De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto.
Morto? Talvez?... Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos?
E se ele não estivesse morto?... Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura?
Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência!
Não... não... sem dúvida... não está morto... Então... então... acho que terei de me matar!...

O Corvo

Edgar Allan Poe


Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais.”

Ah! Claramente eu o relembro! Era o gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais”.

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:
escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia): “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só o vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais.”

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –
“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

Maravilho-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chama: “Nunca mais”.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se
[embora”.
E disse o Corvo: “Nunca mais”.

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de ‘Nunca, nunca, nunca mais...’”.

Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,
e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: “Nunca mais”.

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais...

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descesse a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus
esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, do Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

“Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.
“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
não há de erguer-se, ai! nunca mais!


Tradução de OSCAR MENDES e MILTON AMADO.

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Constantino Kaváfis (1863-1933)  O que esperamos na ágora reunidos?  É que os bárbaros chegam hoje.  Por que tanta apatia no senado?  Os s...