sábado, 29 de outubro de 2005

O Horla

Guy de Maupassant

8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente.
Adoro a casa onde cresci. Das janelas, vejo o Sena, correndo ao lado do jardim, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras, o grandioso e extenso Sena, que vai a Rouen e a Havre, apinhado de barcos que passam para lá e para cá.
Lá embaixo, a esquerda, está a grande cidade de Rouen, com seus telhados azuis e pontiagudas torres góticas. Estas últimas são incontáveis, largas ou estreitas, dominadas pela espiral da catedral e cheias de sinos que tocam no ar azul de belas manhãs, enviando até minha casa seu doce e distante tinido, canção de metal que a brisa impele em minha direção, ora forte, ora débil, conforme a intensidade do vento.
Como a manhã estava agradável!
Lá pelas onze horas, uma longa fila de barcos. puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca, que mal conseguia resfolegar enquanto soltava espessa fumaça, passou em frente a meu portão.
Depois de duas escunas inglesas. com a bandeira vermelha ondulando ao vento, passou um magnífico barco brasileiro de três mastros, todo branco, muito limpo e lustroso. Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser que a visão do navio deu-me grande prazer.
12 de maio. Tenho estado um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente, ou antes, desalentado.
De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar. Acordo com a melhor disposição, sentindo vontade de cantar. Por quê? Desço até a beira da água e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê?
Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos?
Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas idéias e até em nosso coração.
Como esse mistério do Invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nossos sentidos miseráveis, olhos incapazes de perceber o que for muito grande ou muito pequeno, esteja muito perto ou muito longe: nem os habitantes de uma estrela, nem os de uma gota de água. Nem com ouvidos que nos enganam, pois transmitem-nos as vibrações do ar em notas sonoras. São fadas que realizam o milagre de mudar essas vibrações em sons e, por meio dessa metamorfose, fazem surgir a música que transforma o silencioso movimento da natureza... nem com o sentido do olfato, menos aguçado que o de um cão... nem com o sentido do paladar, que mal percebe a idade do vinho!
Como seria bom se tivéssemos outros órgãos que realizassem outros milagres a nosso favor! Quantas coisas novas poderíamos descobrir a nossa volta!
16 de maio. Positivamente, estou doente! E estava tão bem no mês passado! Estou com febre, horrivelmente febril, ou melhor, em um estado de debilitação febril, que faz a alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que é, sem dúvida, o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue.
17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.
25 de maio. Nenhuma mudança! Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível sensação de intranqüilidade, como se a noite escondesse alguma catástrofe ameaçadora. Janto às pressas e então procuro ler, mas não compreendo as palavras e mal distingo as letras. Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama.
Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo... de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada... Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto... o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente?
Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me.
Durmo... bastante tempo... talvez duas ou três horas... Então um sonho... não... um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo... Sinto e sei disso... e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta... aperta com toda a força a fim de estrangular-me.
Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar... mas não consigo. Quero mover-me... não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando... não consigo!
E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor. Acendo uma vela e descubro que estou sozinho. Depois dessa crise, que acontece todas as noites, finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã.
2 de junho. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está adiantando de nada e as duchas não produzem resultado. As vezes, a fim de ficar bem cansado, embora já esteja bastante fatigado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, leve e suave, impregnado do cheiro de ervas e folhas, instilaria sangue novo em minhas veias e daria nova energia a meu coração. Enveredava por uma larga estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma estreita trilha entre duas fileiras de árvores de uma altura descomunal, que formavam um espesso teto de um verde quase negro entre o céu e eu.
Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas um estranho arrepio de agonia. Apressei o passo, apreensivo por estar sozinho na floresta, estupidamente amedrontado sem razão, por causa da completa solidão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me.
Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a larga trilha reta, vazia, cercada de altas árvores, horrivelmente vazia; à minha frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível.
Fechei os olhos. Por quê? Comecei a rodar como pião, bem depressa. Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E, então, que idéia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à avenida que me conduzira ao centro da floresta.
2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.
2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia.
Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! A cidade está sobre uma colina e fui conduzido ao jardim público, nos limites da cidade. Dei um grito de assombro! Uma enorme baía estendia-se diante de mim, até onde os olhos alcançavam, entre duas colinas que a neblina impedia de serem vistas. No meio dessa imensa baía, sob um claro céu dourado, erguia-se uma estranha colina, sombria e pontiaguda, no meio da areia. O sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um fantástico monumento em seu cume.
Quando raiou o dia, fui para lá. Como na noite anterior, a maré estava baixa e vi diante de mim a admirável abadia, cada vez mais próxima. Depois de andar algumas horas, alcancei a enorme massa de rochas sobre a qual se localiza a cidadezinha, dominada pela grande igreja. Depois de subir a rua íngreme e estreita, entrei no mais admirável edifício gótico já construído para Deus na terra, grande como uma cidade, cheio de salas de teto baixo que parecem enterradas sob abóbadas e de grandiosas galerias sustidas por delicadas colunas.
Entrei nessa gigantesca jóia de granito, leve como renda, coberta de torres, com esguios campanários de escadas em caracol, que erguem as estranhas cabeças eriçadas de quimeras, de demônios, de animais fantásticos, com flores monstruosas, para o céu azul durante o dia e negro à noite, e são ligados por arcos finamente entalhados.
Quando cheguei ao ponto mais alto da abadia, disse ao monge que me acompanhava:
Padre, como devem ser felizes aqui! Ao que respondeu:
- Venta muito, monsieur!
Começamos a conversar, enquanto assistíamos à subida da maré, que corria pela areia, e parecia cobri-la com uma couraça de aço.
O monge contou-me histórias, todas as velhas histórias do lugar, lendas, nada mais que lendas.
Uma delas impressionou-me bastante. Os camponeses, aqueles que fazem parte do lugar, dizem que à noite podem-se ouvir vozes nas areias e depois duas cabras balindo, uma com voz forte, a outra com voz fraca. As pessoas incrédulas afirmam que é apenas o grito das aves do mar, que às vezes parecem balidos e, outras, lamentos humanos. Todavia, pescadores que se atrasaram para voltar juram ter encontrado um velho pastor vagando, entre uma maré e outra, pelas areias ao redor da cidadezinha. Traz a cabeça totalmente coberta por um manto e é seguido por um bode com cara de homem e uma cabra com cara de mulher, ambos com longos cabelos brancos, falando sem parar e discutindo em uma língua desconhecida. Calam-se de repente e começam a balir a plenos pulmões.
- Acredita nisso? - perguntei ao monge.
- Não sei ao certo - retrucou.
Continuei:
- Se existem outras criaturas na terra além de nós, como ainda não as conhecemos e por que vocês ainda não as viram? Como é que eu ainda não as vi?
Respondeu:
- Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe aqui, aí está o vento, a maior força que existe na natureza, que derruba homens e edifícios, destrói penhascos e joga grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que assobia, que suspira, que ....... já o viu? Pode vê-lo? Apesar disso, no entanto, ele existe!
Calei-me diante desse raciocínio tão simples. Aquele homem era um filósofo ou, talvez, um tolo. Não saberia dizer qual, exatamente, por isso fiquei quieto. O que dissera, eu já havia pensado muitas vezes.
3 de julho. Dormi mal. Certamente há alguma influência febril aqui, pois meu cocheiro está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei:
- O que tem, Jean?
- Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Desde que partiu, monsieur, parece que estou enfeitiçado. Entretanto, os outros criados estão todos bem. Estou com muito medo de ter outro ataque.
4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente.
5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar!
Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi meio copo de água, notando, por acaso, que a garrafa de água estava cheia até o gargalo.
Fui para a cama e passei por um de meus sonhos terríveis, do qual acordei cerca de duas horas depois, com um choque ainda maior.
Imagine um homem adormecido sendo assassinado e que acorda com uma faca no pulmão e cuja respiração está arquejante, coberto de sangue, que não consegue mais respirar, está quase morrendo e não compreende... aí está.
Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida.
Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia?
Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama.
6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite... ou melhor, eu o bebi!
Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará?
10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. Decididamente, estou louco! Todavia...
A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados.
Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado.
Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em musselina branca e de amarrar as tampas. Esfreguei os lábios, a barba e as mãos com grafita e me deitei.
Um sono irresistível se apossou de mim, seguido de um terrível despertar. Não me movera, não havia marcas de grafita nos lençóis. Corri até a mesa. A musselina ao redor dos frascos estava intacta. Desamarrei as tampas, tremendo de medo. Toda a água fora bebida, assim como o leite! Meu Deus! Preciso partir imediatamente para Paris.
Paris, 12 de julho. Devo ter perdido a cabeça nos últimos dias. Devo ser joguete de minha imaginação exacerbada, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado sob o poder daquelas influências até agora sem explicação, chamadas sugestões. Em todo caso, meu estado mental chegava às raias da loucura, e vinte e quatro horas em Paris bastaram para restaurar meu equilíbrio.
Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que instilaram em minha alma ar novo e revigorante, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou minha cura. É certo que a solidão é perigosa para as mentes ativas. Precisamos de homens que saibam pensar e conversar. Quando ficamos sozinhos por muito tempo, povoamos o espaço com fantasmas.
Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. No meio dos empurrões da multidão, pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjeturas da semana anterior, porque acreditara (sim, acreditara) que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nosso cérebro é fraco, como se assusta à toa e é induzido a erro por um pequeno fato incompreensível!
Em vez de dizer apenas: "Não entendo porque não conheço a causa", imaginamos imediatamente mistérios terríveis e forças sobrenaturais.
14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz.
Digam-lhe: "Divirtam-se", e o povo se diverte. Digam-lhe: "Vão lutar com o vizinho", e o povo vai e luta. Digam-lhe: "Votem pelo imperador", e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: "Votem pela República". e o povo vota pela República.
Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão.
16 de julho. Ontem vi uma coisa que me deixou muito preocupado.
Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e que dá muita atenção às notáveis manifestações causadas pela influência do hipnotismo e da sugestão.
Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que me declarei completamente incrédulo.
- Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas - disse ele. - Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir a ineficiência dos sentidos por meio do intelecto. Enquanto o intelecto manteve-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos. Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: "Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda". Entretanto - continuou o Dr. Parent -, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes.
Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe:
- Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame?
- Sim, certamente.
Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente, como se quisesse encantá-la. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração batendo e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca crispar-se e o peito arfar. Em dez minutos estava dormindo.
- Fique atrás dela - disse-me o médico.
Sentei-me atrás dela. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse:
- Isto é um espelho. O que vê nele?
Ela respondeu: - Vejo meu primo.
- O que ele está fazendo?
- Torcendo o bigode.
- E agora?
- Está tirando uma fotografia do bolso.
- Fotografia de quem?
- Dele mesmo.
Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite.
- Como é a foto?
- Ele está em pé, com o chapéu na mão.
Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho.
As jovens ficaram assustadas e exclamaram: - Chega! Já chega!
Mas o médico ordenou a Mme. Sable: - Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem.
Depois disso, o médico acordou-a.
Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando<> à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas desse tipo.
Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse-me:
Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. - Vesti-me às pressas e fui recebê-la.
Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu, disse-me: - Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor.
- Que favor, minha prima?
- Não quero pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos.
- O quê? Você?
- Sim, eu, ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los.
Fiquei tão atônito que gaguejava as respostas. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que a garganta lhe travava os soluços.
Sabia que era muito rica, por isso continuei: - Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los?
Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu: - Sim... sim, tenho certeza.
- Ele lhe escreveu?
Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu:
- Sim, escreveu-me.
- Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem.
- Recebi a carta hoje pela manhã.
- Pode mostrá-la para mim?
- Não... não... continha assuntos íntimos... coisas muito pessoais... Queimei-a.
- Então seu marido está endividado?
Hesitou mais uma vez e murmurou: - Não sei.
Disse-lhe sem cerimônia: - No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima.
Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor e disse:
- Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim...
Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me! Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera.
- Por favor, imploro-lhe... se soubesse o que estou sofrendo... preciso do dinheiro hoje.
Fiquei com pena: - Você terá daqui a pouco, juro.
- Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito.
- Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? - continuei.
- Sim.
- Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir?
- Sim.
- Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão.
Refletiu por alguns momentos e respondeu: - Mas é como Se meu marido precisasse deles...
Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me com um sorriso e disse: - Acredita, agora?
- Sim, não tenho outra saída.
- Vamos à casa de sua prima.
Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse:
- Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata.
Acordou-a. Peguei a carteira e disse: - Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima.
Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência.
Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado.
19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: "Pode ser!"
21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére... mas, e no Mont-Saint-Michel?... e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa.
30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem.
2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido e passo os dias a olhar o Sena.
4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Só alguém muito esperto poderia dizer.
6 de agosto. Desta vez não estou louco. Eu vi... eu vi... não posso mais duvidar... eu o vi!
As duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras... entre as rosas de outono que começam a cair. Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi perfeitamente a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, terrível mancha vermelha, quase diante de meus olhos. Em desespero, corri para agarrã4a. Nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações.
Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, pois estou certo agora, como certo estou da alternância entre o dia e a noite, de que existe perto de mim uma criatura invisível, que vive a leite e água, pode tocar objetos, pegá-los e mudá-los de lugar, sendo, portanto, dotado de natureza material, embora seja imperceptível a nossos sentidos. Vive como eu, debaixo de meu teto...
7 de agosto. Dormi tranqüilamente. Ele bebeu a água da garrafa, mas não perturbou meu sono. Pergunto a mim mesmo se não estarei louco. Agora mesmo, passeando ao sol à beira do rio, tive dúvidas quanto a minha sanidade. Não dúvidas vagas como as que tive ultimamente, mas dúvidas absolutas e precisas. Já vi gente louca e conheci alguns loucos que são inteligentes, lúcidos, até mesmo perspicazes em tudo, exceto em um ponto. Falavam pronta, clara e profundamente sobre todos os assuntos, até que, de repente, a mente ia de encontro aos escolhos de sua loucura, partia-se ali e se dispersava e debatia naquele mar furioso e terrível, cheio de ondas agitadas, de neblina e pés-de-vento, que se chama Loucura.
Com certeza eu deveria pensar que estava louco, completamente louco, se não estivesse consciente, não conhecesse perfeitamente meu estado, não o analisasse com a mais completa lucidez. De fato, devo ser apenas um homem racional, sofrendo uma alucinação. Deve ter surgido em minha mente algum distúrbio desconhecido, um dentre aqueles que os fisiólogos modernos tentam observar e confirmar. Esse distúrbio deve ter causado profunda brecha na minha mente e na seqüência lógica das idéias. Fenômenos semelhantes acontecem nos sonhos que nos levam a imaginar coisas irreais, sem nos causar surpresa, porque o aparelho de verificação, nosso órgão de controle está adormecido, enquanto a faculdade da imaginação está acordada e ativa.
Não é possível que uma das imperceptíveis unidades do teclado cerebral tenha ficado paralisada em mim? Alguns homens perdem a lembrança de nomes próprios, de verbos ou números, os simplesmente de datas, como conseqüência de algum acidente. A localização de todas as variações de pensamento já está estabelecida atualmente. Por que, então, seria surpreendente se minha faculdade de controlar a irrealidade de algumas alucinações estivesse temporariamente adormecida?
Pensava em tudo isso, enquanto andava pela beira da água. O sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos.
Aos poucos, entretanto, uma indefinível sensação de mal-estar se apossava de mim. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante e chamando-me de volta. Senti aquele penoso desejo de voltar que nos oprime quando deixamos um doente querido em casa e somos tomados por um pressentimento de que piorou.
Assim, voltei contra a minha vontade, certo de que encontraria alguma má noticia à espera, talvez uma carta ou telegrama. Não havia nada, e fiquei mais surpreso e inquieto do que se tivesse tido outra visão fantástica.
8 de agosto. Ontem, passei uma noite horrível. Não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir.
1 de agosto. Nada, mas estou com medo.
10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã?
11 de agosto. Nada ainda. Não consigo ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora.
12 de agosto. Dez horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade - sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen... e não consigo. Por que razão?
13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço.
14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos.
De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os! Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror!
15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar?
Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Este ser irreconhecível, este pirata de raça sobrenatural?
Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha casa. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso.
16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece: - Vá... a Rouen!
Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
Ao voltar para o coche, pretendia dizer: "Para a estação!", em vez disso gritei... não disse, gritei, tão alto que os passantes voltaram-se: - Para casa! - e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim.
17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã! Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo.
Depois de ler até a uma da manhã, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos!
Não havia lua, mas as estrelas lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles?
Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água!
Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi, eu vi, sim, vi com meus próprios olhos, outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido, que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-la, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim... a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si.
Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim!
Mas... mas... amanhã... ou mais tarde... algum dia... conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?
18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora...
19 de agosto. Eu sei... eu sei... eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: "Curiosa noticia chega-nos do Rio de Janeiro. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à loucura contagiosa que atacou a população da Europa, na Idade Média, está, neste momento, grassando na província de São Paulo. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento.
"O professor Pedro Henrique, acompanhado por vários médicos, foi à província de São Paulo, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão."
Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio brasileiro de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso!
Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava.
Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão... sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças imprudentes, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o... o... como se chama... o... Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo... o... sim... está gritando... estou ouvindo... Não consigo... Ele o repete... o... Horla... ou,... o Horla... ele chegou!
Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a flecha, com a espada, com a pólvora. Mas o Horla fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós!
Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de... serei capaz de... mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime.
Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: "Será que vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge... já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe".
E continuei a pensar: "Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça". Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar?
Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tenso como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa.
Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes?
Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância!
Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo... esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer!
O que está acontecendo comigo? É ele, o Horla, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo!
19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então... então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, morde-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alerta.
Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo.
À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atrai-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele.
Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti... tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha.
Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Quê! Bem? Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele... E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo.
Como eu estava amedrontado! E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos.
Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho.
Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer.
20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água, e então teria nosso veneno algum efeito em seu corpo impalpável? Não... não há dúvida sobre isso... Então... então...
21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei venezianas de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo!
10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito... está feito... mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada.
Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as venezianas e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando.
De repente, senti que ele estava lá, e uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, fechei as venezianas de ferro, fui até a porta, tranquei-a rapidamente com um cadeado e guardei a chave no bolso.
Percebi de súbito que ele se movia nervosamente a minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prende-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta.
Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que não se podia ver, mas que pesavam, oh, como pesavam, em minha alma.
Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente.
Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando:
- Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! - Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas.
Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Horla!
De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto.
Morto? Talvez?... Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos?
E se ele não estivesse morto?... Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura?
Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência!
Não... não... sem dúvida... não está morto... Então... então... acho que terei de me matar!...

O Corvo

Edgar Allan Poe


Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais.”

Ah! Claramente eu o relembro! Era o gélido dezembro
e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais”.

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:
escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia): “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só o vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais.”

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –
“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

Maravilho-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chama: “Nunca mais”.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se
[embora”.
E disse o Corvo: “Nunca mais”.

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de ‘Nunca, nunca, nunca mais...’”.

Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,
e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: “Nunca mais”.

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais...

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descesse a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus
esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, do Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

“Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.
“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
não há de erguer-se, ai! nunca mais!


Tradução de OSCAR MENDES e MILTON AMADO.

sábado, 15 de outubro de 2005

Armário

Luís Fernando Veríssimo

Eu queria, senhora, ser o seu armário
e guardar os seus tesouros como um corsário
Que coisa louca: ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida circunspecta
e pesada nessa sua vida tão estabanada.
Um amigo de lei (de que madeira eu não sei)
Um sentinela do seu leito com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas para suas argolinhas
Ter um vão para seu camisolão e sentir o seu cheiro, senhora, o dia inteiro
Meus nichos como bichos engoliriam suas meias-calças,
seus soutiens sem alças, e tirariam
nacos dos seus casacos,
E no meu chão,como trufas, as suas pantufas...
Seus echarpes, seus jeans, seus longos e afins
Seus trastes e contrastes.
Aquele vestido com asa e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo. Um pulôver amigo. Bonecas de pano.
Um brinco cigano.Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.Suéteres de lã e um estranho astracã.
Ah, vê-la se vendo no meu espelho, correndo.
Puxando, sem dores, os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior à procura de um pregador.
Desarrumando meu ser por um prêt-à-porter...
Ser o seu segredo,senhora, e o seu medo.
E sufocar com agravantes todos os seus amantes.

Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!

José Saramago


Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!

Arranjo de Soares Feitosa

Vem aqui, Tomé,

vem comigo até a borda da água,

vem ver-me fazer uns pássaros

com esta lama que colho...

Repara como é tão fácil,

formo e modelo o corpo

e as asas;

afeiçôo a forma da cabeça

e do bico; engasto estas pedrinhas

que são os olhos;

ajeito as penas compridas

da cauda;

equilibro-lhes as pernas e os dedos

e tendo feito

este, faço mais onze;

aqui os tens, um dois, três

quatro, cinco, seis, sete, oito,

nove, dez, onze, doze pássaros

de lama...

Imagina, até, se quiseres,

dar-lhes nomes: este é Simão,

este é Tiago, este é André, este é João, e este,

se não te importas, chamar-se-á

Tomé.

Quanto aos outros vamos esperar

que os nomes apareçam;

os nomes, muitas vezes, atrasam-se

no caminho, chegam

mais tarde...

E agora vê como faço — lanço esta rede

por cima das avezinhas

para que elas não possam fugir, os pássaros..., se

não temos cuidado.

Queres dizer-me que se esta rede

for levantada os pássaros fogem?

Esta é a prova com que querias

convencer-me?

Sim e não!

Como, sim e não?

A melhor prova, mas essa

não é de mim que depende, seria

não levantares tu a rede e acreditares

que os pássaros fugiriam se a levantasses.

São de barro, não podem fugir.

Experimenta! Também Adão,

nosso primeiro pai, foi de barro e tu

descendes dele.

A Adão deu-lhe vida Deus!

Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede, eu sou

o Filho de Deus.

Assim o quiseste, assim o terás,

estes pássaros não voarão!

Com um movimento

rápido, Tomé levantou

a rede, e os pássaros,

livres, levantaram vôo, chilreando,

duas voltas

sobre a multidão maravilhada

e desapareceram no espaço.

Disse Jesus:

Olha, Tomé, o teu pássaro

foi-se embora.

E Tomé respondeu:

Não. Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,

sou eu.

"Versificação", a partir do ritmo cardíaco e do batimento respiratório (uma "viagem", como se, entre os olhos e o ouvido Saramamgo, o Nobel da lusonofia médio) de um texto de Saramago, in O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Companhia das Letras, 31ª reimpressão, páginas 398/399, sem nenhuma alteração a mais ou a menos que a mera arrumação em versos e estrofes. Nem preciso mencionar que este texto em Saramago (aliás, o Evangelho inteiro) é um bloco compacto, com mínimas "cesuras" por vírgulas e nada mais.

Prosa e poesia seriam, assim sem mais nem menos, a Soares Feitosa, 2001 mesma coisa? Sim e não, aliás, sim... desde quê. E por favor bote muitos desdes-quês nessa história. De fato, é possível "metrificar" Euclices da Cunha, Guimarães Rosa, José de Alencar, Clarice Lispector e não muito mais que uns cinco gatos pingados. Da mesma forma, excelente "prosa" em... Álvaro de Campos. É só tentar... desde quê.

Soares Feitosa

Fortaleza, CE, noite alta, 5.5.2003


sábado, 8 de outubro de 2005

Não quero que...

Mário Quintana

Não quero alguém que morra de amor por mim... Só preciso de alguém que viva por mim, que queira estar junto de mim, me abraçando. Não exijo que esse alguém me ame como eu o amo, quero apenas que me ame, não me importando com que intensidade.

Não tenho a pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim... Nem que eu faça a falta que elas me fazem, o importante pra mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível... E que esse momento será inesquecível... Só quero que meu sentimento seja valorizado.

Quero sempre poder ter um sorriso estampando em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre... E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor. Quero poder fechar meus olhos e imaginar alguém... E poder ter a absoluta certeza de que esse alguém também pensa em mim quando fecha os olhos, que faço falta quando não estou por perto.

Queria ter a certeza de que apesar de minhas renúncias e loucuras, alguém me valoriza pelo que sou, não pelo que tenho... Que me veja como um ser humano completo, que abusa demais dos bons sentimentos que a vida lhe proporciona, que dê valor ao que realmente importa, que é meu sentimento... E não brinque com ele. E que esse alguém me peça para que eu nunca mude, para que eu nunca cresça, para que eu seja sempre eu mesmo.

Não quero brigar com o mundo, mas se um dia isso acontecer, quero ter forças suficientes para mostrar a ele que o amor existe... Que ele é superior ao ódio e ao rancor, e que não existe vitória sem humildade e paz. Quero poder acreditar que mesmo se hoje eu fracassar, amanhã será outro dia, e se eu não desistir dos meus sonhos e propósitos, talvez obterei êxito e serei plenamente feliz.

Que eu nunca deixe minha esperança ser abalada por palavras pessimistas...

Dormimos a vida

Bernardo Soares

Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta. Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita. Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.

Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos. A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta. Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo. (...)

Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes - tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.

Trecho extraído de: PESSOA, Fernando. Livro do desassossego, composto por Bernardo Soares, São Paulo, Cia das Letras, 2003.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Aprenda a chamar a polícia

falando em desarmamento...
Luís Fernando Veríssimo

Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruidos que vinham la de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro. Como minha casa era muito segura, com grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali, espiando tranquilamente.

Liguei baixinho para a polícia informei a situação e o meu endereço. Perguntaram-me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa. Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível.

Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma:
- Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guardada em casa para estas situações. O tiro fez um estrago danado no cara!

Passados menos de três minutos, estavam na minha rua cinco carros da polícia, um helicóptero, uma unidade do resgate , uma equipe de TV e a turma dos direitos humanos, que não perderiam isso por nada neste mundo.

Eles prenderam o ladrão em flagrante, que ficava olhando tudo com cara de assombrado. Talvez ele estivesse pensando que aquela era a casa do Comandante da Polícia. No meio do tumulto, um tenente se aproximou de mim e disse:
- Pensei que tivesse dito que tinha matado o ladrão.
Eu respondi:
- Pensei que tivesse dito que não havia ninguém disponível.

sábado, 1 de outubro de 2005

Leis de Murphy

Edição Revista e Atualizada


1.
Se você não perde cabeça quando todos ao redor já perderam, talvez você apenas não esteja entendendo a situação.

2. Lei de Mencken

Para cada problema da humanidade existe uma solução simples e clara, e esta será sempre a solução errada.

3. Lei de Sevareid

A principal causa dos problemas são as soluções.

4. Lei de Thoreau

Se alguém aproximar-se de você com a intenção declarada de lhe fazer o bem, é melhor correr para salvar sua vida.

5. Lei de Peer

A solução do problema muda o problema.

6. Lei do Unicórnio

Nunca brinque de pular cancela com um unicórnio.

7. Conjectura de Lyall

Se um cabo de computador tem um lado, então ele tem outro.

8. Observação Fundamento de Lyall

A perna mais importante de uma mesa de três pernas é aquela que está faltando.

9. Lei de "de la Lastra"

Depois do último dos 16 parafusos ser retirado de uma tampa, será decoberto que estava sendo removida a tampa errada.

10. Corolário de "de la Lastra"

Depois que uma tampa for presa por 16 parafusos, será descoberto que uma ferramenta foi esquecida.

11.

As falhas de projeto andam sempre em grupos.

12. Verdade fundamental de Gerrold

É uma boa coisa que o dinheiro não possa comprar a felicidade. Nós não agüentaríamos os comerciais.

13. Pronunciamento de Gerrold

A diferença entre um político e uma lesma é que a lesma deixa um rastro gosmento.

14. Segunda Lei de Mencken

Quando um homem ri das suas desgraças ele perde muito amigos. Eles nunca perdoam a perda desta oportunidade.

15. Terceira Lei de Mencken

Um idealista é aquele que, ao perceber que as rosas cheiram melhor que as ervilhas, conclui que elas dariam uma sopa melhor.

16. Terceira lei de Clarke

Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguivel da mágica.

17. Primeiro postulado do isomurfismo

As coisas que não são iguais a coisa nenhuma são iguais entre si.

18. A lei inaplicável

Lavar o seu carro para fazer chover não funciona.

19. Lei de Witten

Sempre que você cortar suas unhas, você descobrirá uma necessidade para elas uma hora depois.

20. Postulado de Perkins

Quando maior você é, mais fortes eles batem.

21. Postulado de Harrison

Para cada ação existe uma crítica igual e no sentido contrário.

22. Lei de Conway

Em uma empresa existe sempre uma pessoa que sabe o que está acontecendo. Esta pessoa deve ser despedida.

23. Lei da retroação de Stewart

É mais fácil conseguir o perdão que a permissão.

24. Segunda lei de MacDonald

Consultores são pessoas místicas que perguntam algo à empresa e depois dizem a mesma coisa de volta para ela.

25. Primeira lei do trabalho em laboratório

Um frasco quente é exatamente igual a um frasco frio.

26. Guia prático para a ciência moderna

1.Se é verde, é Biologia.

2.Se fede, é Química.

3.Se não funciona, é Física.

27. Teoria Info-social de Marcos

Errar é humano, mas para fazer coisas realmente idiotas é necessário um computador.

28. O princípio da salsicha

Pessoas que gostam de salsicha e de respeito não devem saber como os dois são feitos.

29. Observação de Horngren (generalizada)

O mundo real é uma exceção.

30. Máxima de Merkin

Na dúvida, preveja que a tendência atual continuará.

31.

Nunca atribua à malicia aquilo que pode ser explicado aceitavelmente pela estupidez.

32. Lei de Gold

Se o sapato couber, ele é feio.

33. Lei das reprises

Se você assistiu uma série de TV apenas uma vez, quando você assistir à reprise será o mesmo episódio.

34. Lei de Shirley

A maioria das pessoas se merecem.

35.

Perdoe e lembre.

36. Lei de Woltman

Nunca programe e beba cerveja ao mesmo tempo.

37. Revelação de Gallois

Se você dá lixo a um computador, nada sairá dele além de lixo. Mas se o lixo passou por uma máquina muito cara, ele será de alguma forma enobrecido e ninguém se atreverá a criticá-lo.

38. Lei da adivinhação política de Galbraith

Se alguém diz quatro vezes que não vai renunciar, ele certamente irá.

39. Lei de Allen

É quase sempre mais fácil entrar do que sair de qualquer coisa.

40. Axioma de Aleen

Se tudo o mais falhar, siga as instruções.

41.

Você pode liderar uma horta, mas você não pode fazê-la pensar.

42. Observação de Avery

Não importa que você caia, desde que você apanhe algo no chão quando se levantar.

43. Lei de Berra

Você pode observar muito só olhando.

44. Lei das bicicletas

Todas as bicicletas pesam 20 quilos.
As bicicletas de 14 quilos precisam de um cadeado de 6 quilos.
As bicicletas de 17 quilos precisam de um cadeado de 3 quilos.
As bicicletas do 20 quilos não precisam de cadeados.

45. Lei de Cohen

O que importa é o nome que você dá aos fatos, não os fatos em si.

46. Lei de Comim

As pessoas aceitarão sua idéia muito mais facilmente se você disser a elas que quem a criou foi Albert Einstein.

47. Quarta lei da termodinâmica

Se a probabilidade de sucesso é quase um, então ela é próxima de zero.

48. Lei de Gerrold das dinâmicas infernais

1.Se um objeto está em movimento, ele está indo na direção errada.

2.Se um objeto está parado, ele está no lugar errado.

49. Lei dos contratos de Goldwin

Um contrato verbal é aquele que não vale o papel em que seria escrito.

50. Postulado do governo democrático de Jacquin

A vida, a liberdade e a propriedado do homem nunca estão seguros enquanto o congresso está em sessão.

51. Princípio de Jone

As necessidades são coisas que outras pessoas possuem.

52. Lei de Langin

Se as coisas tivessem sido deixadas ao acaso, elas estariam melhores.

53.

Não importa o quanto o produto custa, mas quanto você ganha de desconto.

54. Lei dos custos e dos prazos de Pournelle

Tudo custa mais e demora mais tempo.

55. Lamento de Klipstein

Todas as garantias acabam no ato do pagamento da fatura.

56. Observação de Klipstein

Qualquer produto cortado no tamanho exato será pequeno demais.

57. Anotação de Sueker

Se você precisa de "n" itens de um produto, você terá "n-1" em estoque.

58. Arrependimento de Rosenfield

O componente mais delicado é aquele que é derrubado.

59. Quarta lei de Menchen

Sempre que um homem fala do seu amor pela sua pátria, ele certamente espera ser pago por isso.

60. Quinta lei de Menchen

Democracia é a teoria de que as pessoas comuns sabem o que desejam e merecem consegui-lo da forma mais difícil.

61. Sexta lei de Menchen

Um juiz é um estudante de direito que corrige suas próprias provas.

62. Arcana Coelestica

Arcebispo. Um eclesiástico cristão com o grau superior ao de Cristo. Puritanismo. O enorme medo de que alguém, em algum lugar, possa ser feliz.

63. Sétima Lei de Menchen

O adultério é a aplicação da democracia ao amor.

64. Leis militares de Murphy

1. Nunca fique na mesma trincheiro com alguém mais valente que você.
2. Nenhum plano de batalha sobrevive a um contato com o inimigo.
3. Fogo amigo não é amigo.
4. A coisa mais perigosa na zona de combate é um oficial com um mapa.
5. O problema em usar a saída mais fácil e que ela já foi minada pelo inimigo
6. O companheirismo é essencial à sobrevivência. Ele dá ao inimigo outra pessoa em quem atirar.
7. Quanto mais você avança em suas posições, menor é a distância da artilharia do inimigo.
8. O fogo do inimigo tem a preferencial.
9. Se você avança facilmente, você está indo para uma emboscada.
10. O quartel tem apenas dois tamanhos: pequeno demais e grande demais.
11. Se você precisa de um oficial urgente, tire uma soneca.
12. O único lugar onde o cessar fogo funciona é em quando ele é usado em posições abandonadas.
13. A única coisa mais certeira que o fogo inimigo é o fogo amigo.
14. Não existe nada mais agradável do que quando alguém atira em você, e erra.
15. Se seu sargento consegue lhe ver, o inimigo também.

65. Afirmação de Hoover

Abençoados são os jovens, pois eles herdarão a dívida externa.

66. Observação de Ralph

É um erro deixar qualquer objeto mecânico perceber que você está com pressa.

67. Máxima de Manly

A lógica é um método para chegar a uma conclusão errada com confiança.

68. Verdade de Moer

O problema com a maioria dos empregos é a semelhança do empregado com um dos cachorros de uma equipe de corrida de trenó. Apenas o líder dos cachorros consegue apreciar a paisagem.

69. Comentário de Cannon

Se você disser ao patrão que se atrasou porque um pneu do carro furou, seu carro furará o pneu na manhã seguinte.

70. Lei de Murphy

Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará.

71. Corolário de Murphy

Deixadas ao acaso, as coisas tendem a ir de mal a pior.

72. Constante de Murphy

As coisas são danificadas proporcionalmente ao seu valor.

73. Revisão quantizada da lei de Murphy

Tudo dá errado ao mesmo tempo.

74. Comentário de O'Toole

Murphy era otimista.

75. Segunda lei de Scott

Se um erro for detectado e corrigido, descobriremos depois que não havia erro antes e sim depois da correção.

76. Primeira lei de Finagle

Se uma experiência funciona, algo deu errado.

77. Segunda lei de Finagle

Independente do resultado de uma experiência, existirá sempre alguém querendo:
1. Interpretar a experiência incorretamente
2. Falsificar sua experiência ou
3. Acreditar que ela justifica a sua própria teoria.

78. Terceira lei de Finagle

Em um conjunto de dados, a peça que obviamente está correta, acima de qualquer suspeita, é o erro.

79. Quarta lei de Finagle

Uma vez que um trabalho foi estragado, qualquer coisa feita para melhorá-lo vai torná-lo pior.

80. Lei de Gumperson

A probabilidade de uma coisa acontecer é inversamente proporcional ao desejo que ela aconteça.

81. Lei de Rudin

Em uma crise, quando as pessoas são forçadas a escolher entre diversos tipos de ação, a maioria escolherá a pior ação possível.

82. Reestruturação das leis da Termodinâmica por Ginsberg

Você não pode vencer.
Você também não pode quebrar.
Você não pode desistir.

83. Comentário de Ehrman

Diz-se que as coisas pioram antes de melhorar. E quem disse que elas iriam melhorar?

84. Segunda lei da Ecologia de Commoner

Nada jamais vai embora.

85. Lei de Howe

Todos têm um plano de que não funciona.

86. Primeira lei da Evolução Dinâmica de Sistemas de Zymurgy

Se você abre uma lata de minhocas, a única forma de colocá-las de volta em uma lata é usar uma lata maior.

87. Lei das Expectativas Não-Recíprocas

Expectativas negativas dão resultados negativos. Expectativas positivas dão resultados negativos.

88. Lei de Klipstein

A tolerância acumulará unidirecionalmente em direção à máxima dificuldade de montagem.

89.

Você não acha um produto perdido a não ser que compre outro igual.

90. Leis de Murphy para a Programação

1. Todo programa, quando acabado, estará obsoleto.
2. Todo programa custa mais e demora mais tempo.
3. Se um programa é útil, ele deve ser modificado.
4. Se um programa é inútil, ele deve ser documentado.
5. Os programas expandem de forma a encher toda a memória disponível.
6. O valor de um programa é proporcional ao peso de seus relatórios.
7. A complexidade de um programa cresce até exceder a capacidade do programador que deve mantê-lo.
8. Todo programa não trivial possui pelo menos um bug.
9. Erros não-detectáveis são infinitos, ao contrário dos erros detectáveis que são, por definição, limitados.
10. Adicionar mais pessoas a um projeto de software atrasado o tornará ainda mais atrasado.

91. Lei de Glatum da Aquisição Materialística

A utilidade perceptível de um produto é inversamente proporcional à real utilidade depois que o produto foi comprado e pago.

92. Lei de Lewi

Não importa o quanto você pesquise antes de comprar um produto. Depois que você comprá-lo você sempre descobrirá que ele está à venda em outro lugar por um preço menor.

93.

Se ninguém usa, existe uma razão.

94.

Sempre se consegue o máximo daquilo que não se precisa.

95. Lei do Avião

Quando o avião em que você está se atrasa, o avião com o qual você fará conexão estará no horário.

96. Observação de Etorre

A outra fila sempre anda mais rápido.

97. Primeira Lei da Revisão

A informação sobre a necessidade de mudança de um projeto sempre será enviada ao projetista depois e somente depois do projeto estar totalmente terminado. (Conhecida como "E só agora ele me diz...")

98. Segunda Lei da Revisão

Quanto mais insignificante uma mudança aparenta ser, mais sua influência aumentará de modo a modificar totalmente o projeto.

99. Corolário da Primeira Lei da Revisão

Em casos simples, existindo uma opção obviamente correta e outra obviamente errada, é mais indicado escolher a opção errada, de forma a antecipar a próxima revisão.

100. Lei de Lubersky da Entomologia Cibernética

Sempre existe mais um bug.

101. Princípio de Shaw

Crie um sistema que até um idiota pode usar e apenas um idiota vai querer usá-lo.

102. Lei da Perversidade da Natureza

Você nunca pode identificar qual dos lados da torrada é o lado que se deve passar a manteiga.

103. Lei da Gravidade Seletiva

Um objeto sempre cai de forma a causar o maior prejuízo possível.

104. Corolário de Jennings à Lei da Gravidade Seletiva

A chance de uma torrada cair com o lado da manteiga para baixo é diretamente proporcional ao valor do tapete.

105. Segunda Lei de Wyszkowski

Qualquer coisa pode ser colocada para funcionar se você mexer com ela o tempo suficiente.

106. Lei de Sattinger

Funciona melhor quando você liga na tomada.

107. Lei de Lowery

Se emperrar, force. Se quebrar, já precisava de conserto de qualquer jeito.

108. Lei de Schimidt

Se você mexer com algo o tempo suficiente, conseguirá quebrar.

109. Lei da Força de Anthony

Não force. Use um martelo maior.

110. Axioma da Cahn

Quando tudo o mais falhar, leia as instruções.

111. Primeira Lei de Gordon

Se não vale a pena fazer algo, também não vale a pena fazê-lo bem feito.

112. Lei da Pesquisa

Uma determinada quantidade de pesquisa tende a suportar sua teoria.

113. Lei de Maier

Se os fatos não comprovam sua teoria, despreze-os.

114. Lei de Bokonon

Cuidado com o homem que se esforça muito para aprender alguma coisa, aprende e depois nota que não está mais inteligente do que antes. Ele é cheio de um ressentimento assassino das pessoas que são ignorantes sem terem chegado a esta ignorância pelo caminho mais difícil.

115.

Ajude um homem quando ele está com problemas e ele sempre se lembrará de você quando estiver com problemas de novo.

116.

Você pode fazer um homem rir, mas você não pode fazê-lo pensar.

117.

Nao se irrite, se vingue.

118. Lei de Carson

É melhor ser rico e saudável do que pobre e doente.

119. A Lei do Ouro

Quem tem o ouro faz a lei.

120. Marco de Mark

Amor é uma questão de química. Sexo é uma questão de física.

121. Conclusão de Korman

O problema em resistir às tentações é que elas podem não aparecer nunca mais.

122. Lei de Knight

Vida é o que acontece com você enquanto você faz outros planos.

123. Pensamento de Maugham

Somente uma pessoa medíocre está sempre usando todo o seu potencial.

124. Observação de Krueger

Um contribuinte é alguém que não tem que fazer um concurso para trabalhar para o governo.

125. Lei da Distinção de Benchley

Existem dois tipos de pessoas no mundo: as que acreditam que existem dois tipos de pessoas no mundo e as que não acreditam.

126. Lei de Harver

As palavras de um bêbado são os pensamentos de um sóbrio.

127. Observação de Schimidt

Se tudo o mais for igual, uma pessoa gorda usa mais sabonete que uma pessoa magra.

128. Lei de Gibb

Infinito é um advogado esperando por outro.

129.

Os idiotas vão correndo para onde outros idiotas já estiveram antes.

130. Lei da Precisão

Quando se procura a solução de um problema, sempre ajuda conhecer a resposta.

131.

Dentro de cada problema pequeno existe sempre um grande problema lutando para sair.

132. Lei de Wyszowski

Nenhuma experiência é reproduzível.

133. Lei de Fett

Nunca tente reproduzir uma experiência bem sucedida.

134. Lei de Brooke

Sempre que um sistema está totalmente definido, algum idiota descobre algo que ou abole o sistema ou então expande-o até um ponto em que fica irreconhecível.

135. Primeiro mito da Administração

Acreditar que ela existe.

136.

Perca tempo suficiente confirmando uma necessidade e ela desaparecerá.

137. Lei de Peter

Um grama de imagem vale um quilo de performance.

138. Lei do Trabalho Voluntário de Zymurgy

As pessoas estão sempre disponíveis para trabalho no passado.

139. Lei de Wiker

O governo expande de forma a absorver todo o orçamento e algo mais.

140. Primeira lei de Clarke

Quanto um cientista velho e reconhecido afirma que algo é possível, ele está provavelmente certo. Quando ele diz que algo é impossível, está provavelmente errado.

141. Lei de Segal

Um homem com um relógio sabe que horas são. Um homem com dois relógios nunca tem certeza.

142. Lei de Weiler

Nada é impossível para o homem que não tem que fazer por conta própria.

143. Segunda Lei de Weinberg

Se os engenheiros construíssem prédios como os programadores escrevem programas, um único picapau seria capaz de destruir a civilização.

144. Segunda Lei de Hartley

Nunca vá para a cama com alguém mais louco que você.

145. Lei de Beckhap

Beleza vezes Inteligência é igual a uma constante.

146. Lei de Katz

Um homem e uma mulher agirão racionalmente quando todas as outras possibilidades forem esgotadas.

147. Axioma de Cole

A soma de toda a Inteligência no planeta é uma constante e a população está aumentando.

148. Lei de Vique

Um homem sem religião é como um peixe sem uma bicicleta.

149. Consideração de Jone

Amigos vêm e vão, mas os inimigos se acumulam.

150. Comentário de Churchill sobre o homem

O homem pode ocasionalmente tropeçar na verdade, mas na maioria das vezes ele se levanta e continua indo na mesma direção.

151. A mais importante das leis

Todas as afirmativas genéricas são falsas.

152. A Lei Indizível

Sempre que se menciona algo: se é bom, vai embora; se é ruim, acontece.

153. A Lei do sussurro

As pessoas acreditam em tudo que lhes é sussurrado.

154. Primeira Lei do Vôo

Nunca largue o que você está segurando até que segure outra coisa.

155.

Coma uma lesma viva de manhã e nada pior lhe acontecerá durante o dia.

156. Corolário de Farnsdick

Depois que as coisas forem de mal a pior, o ciclo se repetirá.

157. Lei de Lynch

Quando as coisas pioram, todos vão embora.

158. Lei da Revelação

Nenhuma falha escondida permanece escondida.

159. Lei de Langsam

Tudo depende.

160. Lei de Hellrung

Se você esperar, ele irá embora.

161. Extensão de Shevelson

Se você esperar, ele irá embora, depois de causar seu prejuízo.

162. Adição de Rosemberg

Se você esperar, ele irá embora. Se foi ruim, ele voltará.

163. Menção de Grossman

Problemas complexos tem soluções simples, fáceis de entender e erradas.

164. Preceito de Ducharme

A oportunidade sempre bate no momento menos oportuno.

sábado, 10 de setembro de 2005

SEJA UM IDIOTA

Arnaldo Jabor

A idiotice é vital para a felicidade. Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. A vida já é um caos, por que fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável: mortes, separações, dores e afins.

No dia-a-dia, pelo amor de Deus, seja idiota! Ria dos próprios defeitos. E de quem acha defeitos em você. Ignore o que o boçal do seu chefe disse. Pense assim: quem tem que carregar aquela cara feia, todos os dias, inseparavelmente, é ele. Pobre dele.

Milhares de casamentos acabaram-se não pela falta de amor, dinheiro, sexo, sincronia, mas pela ausência de idiotice. Trate seu amor como seu melhor amigo, e pronto. Quem disse que é bom dividirmos a vida com alguém que tem conselho pra tudo, soluções sensatas, mas não consegue rir quando tropeça?
Ha ha ha ha ha ha ha ha!

Alguém que sabe resolver uma crise familiar, mas não tem a menor idéia de como preencher as horas livres de um fim de semana? Quanto tempo faz que você não vai ao cinema?

É bem comum gente que fica perdida quando se acabam os problemas. E daí, o que elas farão se já não têm por que se desesperar?

Desaprenderam a brincar. Eu não quero alguém assim comigo. Você quer?
Espero que não.

Tudo que é mais difícil é mais gostoso, mas... a realidade já é dura; piora se for densa. Dura, densa, e bem ruim. Brincar é legal. Entendeu?

Esqueça o que te falaram sobre ser adulto, tudo aquilo de não brincar com comida, não falar besteira, não ser imaturo, não chorar, não andar descalço, não tomar chuva. Pule corda! Adultos podem (e devem) contar piadas, passear no parque, rir alto e lamber a tampa do iogurte. Ser adulto não é perder os prazeres da vida - e esse é o único "não" realmente aceitável. Teste a teoria. Uma semaninha, para começar. Veja e sinta as coisas como se elas fossem o que realmente são: passageiras. Acorde de manhã e decida entre duas coisas: ficar de mau humor e transmitir isso adiante ou sorrir...

Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração! Aliás, entregue os problemas nas mãos de Deus e que tal um cafezinho gostoso agora?

"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios". "Por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche".

sábado, 3 de setembro de 2005

O Rouxinol e a Rosa

Oscar Wilde

– Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas não vejo nenhuma rosa vermelha no jardim.

Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado...

– Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – repetiu o Estudante, com os lindos olhos cheios de lágrimas.

– Ah! Como depende a felicidade de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.

E eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Gorjeei-o noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.

– Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Se levar-lhe uma rosa vermelha, hei de tê-la nos braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... e ficarei só; ela apenas passará por mim... Passará por mim... e meu coração se despedaçará.

– Eis, na verdade, um apaixonado... – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. Aflige-o o que me alegra. Grande maravilha, na verdade, o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.

– Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.

– Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.

– É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.

– Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.

– Chora por causa de uma rosa vermelha, - informou o Rouxinol.

– Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.

Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.

Subitamente, abriu as asas pardas e voou.

Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.

Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!

– Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.

Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são amarelas como a cabeleira dourada das sereias que repousam em tronos de âmbar, e mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez te possa ajudar.

O Rouxinol então, dirigiu o vôo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu - e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.

– Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, - uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?

– Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.

– Dize. Não tenho medo.

– Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.

– A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola...O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?

Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.

O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.

– Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá.

Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora sábia; mais poderoso que o poder, embora poderosa. Tens as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em teus braços e seu hálito lembra o incenso.

O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.

Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.

– Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.

Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.

Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.

– Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!

Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.

Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais enterrou-se-lhe no peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...

Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.

Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, - exigiu a Roseira, - senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.

O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.

E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.

Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.

– Mais ainda, Rouxinol, - clamou a Roseira – raiar o dia antes que eu finalize a rosa.

E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.

Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.

E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.

Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.

Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.

Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.

A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.

– Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.

Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.

– Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.

Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.

– Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, - lembrou-se o Estudante. – Aqui tens a rosa mais vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá quanto te amo.

Mas a moça franziu a testa.

– Talvez não combine bem com o meu vestido, disse. Ademais, o sobrinho do Camareiro mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores...

– És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.

– Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o sobrinho do camareiro... – e a moça levantou-se e entrou em casa.

– Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.

Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...

Aos que virão depois de nós

Bertolt Brecht

I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?
É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)
Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.
Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

sábado, 27 de agosto de 2005

A mulher e a sombra

Vinícius de Moraes

Tentei, um dia, descrever o mistério da aurora marítima.

Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
E fica como louca, sentada espiando o mar...

Eu a vira, essa aurora. Não havia cor nem som no
mundo. Essa aurora, era a pura ausência. A ânsia de
prendê-la, de compreendê-la, desde então me perseguiu.
Era o que mais me faltava à Poesia:

E um grande túmulo veio
Se desvendando no mar...

Mas sempre em vão. Quem era ela de tão perfeita, de
tão natural e de tão íntima que se me dava inteira e
não me via; que me amava, ignorando-me a existência?

És tu, aurora?
Vejo-te nua
Teus olhos cegos
Se abrem, que frio!
Brilham na treva
Teus seios tímidos...

O desespero inútil das soluções... Nunca a verdade
extrema da falta absoluta de tudo, daquele vácuo de
Poesia:

Desfazendo-se em lágrimas azuis
Em mistério nascia a madrugada...

Lembrava uma mulher me olhando do fundo da treva:

Alguém que me espia do fundo da noite
Com olhos imóveis brilhando na noite
Me quer.

E fora essa a única verdade conseguida. A aurora é uma
mulher que surge da noite, de qualquer noite – essa
treva que adormece os homens e os faz tristes. Só a
sua claridade é amiga e reveladora. Ao poeta mais
pobre não seria dado desvendá-la em sua humildade
extrema. O poeta Carlos, maior, mais simples, a
revelaria em sua pulcritude, a aurora que unifica a
expressão dos seres, dá a tudo o mesmo silêncio e faz
bela a miséria da vida:

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
Adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo facista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda não se modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

A aurora dos que sofrem, a única aurora. Aquela mesma
que eu vira um dia, mas cujo segredo não soubera
revelar. Uma mulher que surge da sombra...
Bem haja aquele que envolveu sua poesia da luz piedosa
e tímida da aurora!

01.1945

Fonte: Para uma menina com uma flor (crônicas). In Poesia completa e prosa.

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas dos teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

domingo, 21 de agosto de 2005

Complexidade Feminina

Luis Fernando Veríssimo


M = Mulher
H = Homem

H - (Entra em casa)
M - Oi!
H - Oi!
M - Trabalhou muito?
H - Sim.
M - Tá cansado?
H - Um pouco.
M - Toma um banho!
H - Vou sim... preciso....... (Banho.)
M - Ué... vai sair?
H - Vou dar uma volta.
M - Sozinho?
H - É... sozinho.
M - Vai aonde?
H - Por aí.
M - Sozinho?
H - É.
M - Certeza?
H - Sim.
M - Quer que eu vá com você?
H - Não... pode deixar... prefiro ir sozinho.
M - Vai sozinho andar pela cidade?
H - É.
M - De carro?
H - Sim.
M - Tem gasolina?
H - Sim... coloquei.
M - Vai demorar?
H - Não... coisa de uma hora.
M - Vai a algum lugar específico?
H - Não... só rodar por aí.
M - Não prefere ir a pé?
H - Não... vou de carro.
M - Traz um sorvete pra mim!
H - Trago... que sabor?
M - Manga.
H - Ok... na volta eu passo e compro.
M - Na volta?
H - Sim... senão derrete.
M - Passa lá, compra e deixa aqui.
H - Não... melhor não! Na volta... é rápido!
M - Ahhhhh!
H - Quando eu voltar eu tomo com você!
M - Mas você não gosta de manga!
H - Eu compro outro... de outro sabor.
M - Aí fica caro... traz de cupuaçu!
H - Eu não gosto também.
M - Traz de chocolate... nós dois gostamos.
H - Ok! Beijo... volto logo...
M - Ei!
H - O que?
M - Chocolate não... Flocos...
H - Não gosto de flocos!
M - Então traz de manga prá mim e o que quiser prá você.
H - Foi o que sugeri desde o começo!
M - Você está sendo irônico?
H - Não... tô não! Vou indo.
M - Vem aqui me dar um beijo de despedida!
H - Querida! Eu volto logo... depois.
M - Depois não... quero agora!
H - Tá bom! (Beijo.)
M - Vai com o seu ou com o meu carro?
H - Com o meu.
M - Vai com o meu... tem cd player... o seu não!
H - Não vou ouvir música... vou espairecer...
M - Tá precisando?
H - Não sei... vou ver quando sair!
M - Demora não!
H - É rápido... (Abre a porta de casa.)
M - Ei!
H - Que foi agora?
M - Nossa!!! Que grosso! Vai embora!
H - Calma... estou tentando sair e não consigo!
M - Porque quer ir sozinho? Vai encontrar alguém?
H - O que quer dizer?
M - Nada... nada não!
H - Vem cá... acha que estou te traindo?
M - Não... claro que não... mas sabe como é?
H - Como é o quê?
M - Homens!
H - Generalizando ou falando de mim?
M - Generalizando.
H - Então não é meu caso... sabe que eu não faria isso!
M - Tá bom... então vai.
H - Vou.
M - Ei!
H - Que foi, cacete?
M - Leva o celular, estúpido!
H - Prá quê? Prá você ficar me ligando?
M - Não... caso aconteça algo, estará com celular.
H - Não... pode deixar...
M - Olha... desculpa pela desconfiança... estou com saudade... só isso!
H - Ok meu amor... Desculpe-me se fui grosso.
Tá... eu te amo!
M - Eu também!
M - Posso futricar no seu celular?
H - Prá quê?
M - Sei lá! Joguinho!
H - Você quer meu celular prá jogar?
M - É.
H - Tem certeza?
M - Sim.
H - Liga o computador... lá tem um monte de joguinhos!
M - Não sei mexer naquela lata velha!
H - Lata velha? Comprei pra a gente mês passado!
M - Tá.. ok... então leva o celular senão eu vou futricar...
H - Pode mexer então... não tem nada lá mesmo...
M - É?
H - É.
M - Então onde está?
H - O quê?
M - O que deveria estar no celular mas não está...
H - Como!?
M - Nada! Esquece!
H - Tá nervosa?
M - Não... tô não...
H - Então vou!
M - Ei!
H - Que ééééééé?
M - Não quero mais sorvete não!
H - Ah é?
M - É!
H - Então eu também não vou sair mais não!
M - Ah é?
H - É.
M - Oba! Vai ficar comigo?
H - Não vou não... cansei... vou dormir!
M - Prefere dormir do que ficar comigo?
H - Não... vou dormir, só isso!
M - Está nervoso?
H - Claro, porra!!!
M - Por que você não vai dar uma volta para espairecer?

domingo, 7 de agosto de 2005

OS POEMAS

Mário Quintana

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

domingo, 31 de julho de 2005

Momentos...

Clarice Lispector

Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém
que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos
sonhos e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida
e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.

Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas
que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante é baseado num passado
intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e
as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram
uma eternidade.
A vida não é de se brincar, porque em um belo dia se morre.

sexta-feira, 22 de julho de 2005

Código dos Homens Honestos

ou
A arte de não se deixar enganar por larápios
Honoré de Balzac

Roubos em lojas, apartamentos, cafés, restaurantes, roubos domésticos etc.

São roubos horríveis porque se apóiam na confiança. É difícil precaver-se contra eles, como se percebe pela raridade de nossos aforismos. Só podemos aludir aos exemplos mais famosos.

Art. 1º: As pessoas honradas, forçadas pelo destino a contratar cozinheiras, devem, para sua segurança, tentar contratar pessoas de bons costumes.

A maior parte dos roubos domésticos é fruto do amor.
O amante da cozinheira pode levá-la a fazer muitas coisas.
Você conhece a cozinheira; você não conhece o amante.
Você não tem o direito de proibir que sua cozinheira tenha um amante, pois:
1º: Os amantes são independentes das cozinheiras;
2º: Ao querer se casar, sua cozinheira está fazendo uso do pleno direito natural;
3º: Se ela tem um amante, é por uma boa razão.
Assim, amantes e cozinheiras são males necessários e inseparáveis.

Art. 2º: Examine com atenção as casas lotéricas de seu bairro, e procure saber se seus empregados jogam, se jogam apenas o que ganham etc.

Art. 3º: Nem sempre seus cavalos comerão muita aveia, mas sempre beberão muita água.
É difícil inspecionar as cocheiras.

Art. 4º: Quando seu apartamento estiver para alugar, muita gente virá vê-lo; não deixe nada fora das gavetas.

Art. 5º: Pretender impedir que um mordomo, uma cozinheira etc. roubem da despensa é uma rematada loucura.
Você será mais ou menos roubado, nada mais do que isto.

Art. 6º: A camareira usará os vestidos da patroa, o lacaio experimentará os ternos do patrão, usará suas camisas.
Se aquela viagem é um pretexto para se livrar dos importunos, por outro lado lhe trará vários problemas.
Assim que você partir, seu criado usará sua roupa, o copeiro irá à adega, o lacaio passeará no seu tílburi com a camareira, que ostensivamente cobrirá os ombros com um xale de caxemira. Enfim, será uma pequena orgia.

Art. 7º: Meio termo, jamais: tenha total confiança em seus criados, ou nenhuma.

Art. 8º: Uma cozinheira que tenha apenas um amante tem bons costumes; mas é necessário saber que amante é esse, seus meios de sobrevivência, seus gostos, suas paixões etc.
Essa pequena polícia doméstica pode evitar um assassinato.

---
Fonte: BALZAC, Honoré de. Código dos homens honestos. São Paulo, Ed.Abril, 2004.

quarta-feira, 20 de julho de 2005

Procura-se um Amigo

Vinícius de Moraes


Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

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Feliz Dia do Amigo!

sábado, 16 de julho de 2005

Fidel e a decadência do socialismo

Putin foi a Cuba e ficou impressionado com o número de pessoas usando sapatos furados, rasgados em cima e etc. Então, perguntou a Fidel, o porquê disso. Pois 40 anos de "melhoras" já haviam passado... como é possível que as pessoas ainda estavam com sapatos rasgados e maltratados nos pés? Fidel, indignado, respondeu com uma pergunta:

“E na Rússia, não é a mesma coisa? Vai me dizer que lá todo mundo tem sapato novo?”

Putin disse a Fidel que fosse a Rússia e conferisse por si mesmo. Que se ele encontrasse um cidadão qualquer com sapatos furados, tinha a permissão para matar essa pessoa. Fidel tomou um avião e viajou para Moscou. Quando desembarcou, a primeira pessoa que viu estava com sapatos rasgados, furados, tão velhos que pareciam ter pertencido ao seu avô. Fidel mão titubeou; sacou sua pistola e matou o sujeito – afinal, tinha permissão de seu colega Putin para fazer isso.

No dia seguinte os jornais anunciaram:

BARBUDO MALUCO MATA O EMBAIXADOR DE CUBA NO AEROPORTO!

A POESIA

Ferreira Gullar

Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
Sem haste, juro!

Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
É de papel.

Não é como a açucena
Que efêmera
Passa.
E não está sujeito a traça
Pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
O meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que traspassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
depois de tudo
a poesia ri de mim

Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?)
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
A tua grácia!



E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).


2
Poesia – deter a vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? O pás
?


Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução


GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 5ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1991, pp.209-212.

segunda-feira, 11 de julho de 2005

A canção da vida

Mário Quintana

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flore está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluiro azul do ar!
Não vás ficarnão vás ficaraí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Portugal e a Nasa

A Nasa enviou ao espaço três macacos e um português:

- Nasa para nave, macaco n. 1 configurar painel de controle da espaçonave.

- Configuração efetuada!

- Macaco n. 2 verificar pressurização da espaçonave.

- Pressurização verificada!

- Macaco n. 3, alinhar a rota da espaçonave.

- Rota alinhada!

- Astronauta português.

- Já sei, já sei, “põe comida prós macacos e não mexe em nada”.

quinta-feira, 7 de julho de 2005

Um sonho num sonho

Edgar Allan Poe

Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confesar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fingidia?
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.

Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grão de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! Meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! Meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?

domingo, 3 de julho de 2005

Discussão

Um casal foi entrevistado num programa de televisão porque estavam casados há 50 anos e nunca tinham discutido. O repórter, curioso, perguntou à mulher:

- Mas vocês nunca discutiram mesmo?

- Não – respondeu a mulher.

- Como é possível isso acontecer?

- Bem, quando nos casamos, o meu marido tinha uma égua de estimação. Era a criatura que ele mais amava na vida. No dia do nosso casamento, partimos para a lua-de-mel em nossa carroça puxada pela égua. Andamos alguns metros e a égua, coitada, tropeçou. O meu marido, desceu, olhou bem nos olhos dela e disse: “Um”. Mais alguns metros e a égua tropeçou novamente. Meu marido, desceu, olhou bem nos olhos dela e disse: “Dois”. Na terceira vez que ela tropeçou, ele sacou uma espingarda e disparou quinze tiros na bichinha. Eu fiquei apavorada e perguntei: “Seu ignorante desalmado... Por que você fez isso, homem?”. Ele se virou para mim, me olhou bem nos olhos e disse: “Um”. Depois disso, nós nunca mais discutimos.

Das Alegorias

Franz Kafka

Muitos se queixam de que as palavras dos sábios sejam sempre alegorias, porém inaplicáveis na vida diária, e isto é o único que possuímos. Quando o sábio diz: "Anda para ali", não quer dizer que alguém deva passar para o outro lado, o que sempre seria possível se a meta do caminho assim o justificasse, porém que se refere a um local legendário, algo que nos é desconhecido, que

tampouco pode ser precisado por ele com maior exatidão e que, portanto, de nada pode servir-nos aqui.

Em realidade, todas essas alegorias apenas querem significar que o inexeqüível é inexeqüível, o que já sabíamos. Mas aquilo em que cotidianamente gastamos as nossas energias, são outras coisas. A este propósito disse alguém: "Por que vos defendeis? Se obedecêsseis às alegorias, vós mesmos vos teríeis convertido em tais, com o que vos teríeis libertado da fadiga diária." Outro disse: "Aposto que isso é também uma alegoria." Disse o primeiro: "Ganhaste".

Disse o segundo: "Mas por infelicidade, apenas naquilo sobre alegoria". O primeiro disse: "Em verdade, não; no que disseste da alegoria perdeste".

À espera dos bárbaros

Constantino Kaváfis (1863-1933)  O que esperamos na ágora reunidos?  É que os bárbaros chegam hoje.  Por que tanta apatia no senado?  Os s...