sábado, 4 de junho de 2005

Carta

Carlos Drummond de Andrade

Bem quisera escrevê-la
Com palavras sabidas,
As mesmas, triviais,
Embora estremecessem
A um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
Canais de argila e sombra,
Ela iria contando
Que vou bem, e amo sempre
E amo cada vez mais
A essa minha maneira
Torcida e reticente,
E espero uma resposta,
Mas que não tarde; e peço
Um objeto minúsculo
Só para das prazer
A quem pode ofertá-lo;
Diria ela do tempo
Que faz do nosso lado;
As chuvas já secaram,
As crianças estudam,
Uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-nos tornando o tempo
Estranhamento longo
Á medida que encurta.
O que ontem disparava,
Desbordado alazão,
Hoje se paralisa
Em esfinge de mármore,
E até o sono, o sono
Que era grato e era absurdo
É um dormir acordado
Numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
Que se vai, de mandar
Notícias amorosas
Quando não há amor
A dar ou receber;
Quando só há esperança,
Ainda menos, pó,
Menos ainda, nada,
Nada de nada em tudo,
Em mim mais do que em tudo,
E não vale acordar
Quem acaso repouse
Na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

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